quarta-feira, 21 de novembro de 2007

Post 13: Sobre Montagem, Juntões e Frame-Fucking



Apagamos a luz para fingir que estávamos numa sala de cinema e tiramos o telefone do gancho, um saiu para beber água outro para ir ao banheiro. Assistir ao filme montado pela primeira vez é uma experiência tensa. Mesmo conhecendo cada linha do texto, o tom em que cada frase foi falada, os enquadramentos, mesmo depois de já ter decorado como estão montadas cada seqüência ou saber em que instante a música de referência vai entrar. Mesmo assim, eu estava ansioso. Aparentemente tudo parecia estar correto, mas o problema é que neste trabalho 5 + 5 pode ser igual a três e essa era a hora de conferir a soma. Mas o que tem que ser feito, tem que ser feito. “Dá logo play nessa bagaça”, pedi. Quando o filme acabou eu não estava deprimido, sentia apenas um leve mal-estar. “Talvez seja bom sinal”, pensei. “Acho que vai dar para salvar”.

O Daniel Rezende começou essa montagem em julho, em Toronto, mas isso a que assistimos ainda não era nem um primeiro corte, era apenas um “juntão”, como ele chama. Um “juntão” são todas as cenas “armadas” e enfileiradas na ordem do roteiro. Mesmo quando não gostamos de alguma coisa que foi filmada, ela vai para o bolo. (Só mesmo as cenas que ficaram vergonhosamente ruins é que são cortadas de cara. Certas coisas devem ser esquecidas). Claro que sempre há espaço para se tentar algumas transições interessantes ou fazer algumas experimentações mais arriscadas e gosto de ser surpreendido, mas, a princípio, a idéia do juntão está mais para lição de casa.

Deu duas horas e quarenta minutos. Muito longo. Como não pretendo ficar gastando o precioso tempo do espectador, minha idéia é deixar este filme com umas duas horas no máximo, então a próxima missão era jogar 40 minutos no lixo e tentar achar uma história com bom ritmo no que sobrar. Este é um momento do processo que gosto, é concentrado, há espaço para criação, não há prazos malucos e nem pressão externa. É quando os problemas de roteiro ou interpretação são percebidos e contornados, onde um personagem pode ser modificado ou um canastrão pode virar um ator razoável. (Aliás se você pensa em seguir a carreira de ator eis o melhor conselho que posso dar: Suborne sempre o montador. Leve chocolate, flores se for uma montadora, até um vinho mais caro se seu trabalho estiver realmente fraco). Há um milhão de maneiras de melhorar uma atuação na montagem. Nos momentos mais vergonhosos pode-se cortar para a cara do outro ator evitando o vexame, uma fala mal falada pode ser regravada e usada com a imagem do ator de costas e daí para frente. É muito fácil tapear o espectador (sinto muito) e confesso que tenho um certo prazer quando consigo fazer isso sem deixar marcas da trapaça. Mas neste caso, conforme o previsto, não precisaremos usar estes truques sujos, nosso elenco é muito consistente. O trabalho maior desta montagem será achar o tom certo para cada personagem. Coloca-se um olhar a mais, uma pausa a menos, põe-se aqui, corrige-se ali, é como temperar um ensopado. Neste processo tentamos deixar o médico mais arrogante no início, sua mulher mais bobinha, a Garota de Óculos Escuros mais fria, e assim por diante e então, durante o filme, todos vão se transformando, criando o chamado “arco do personagem”. No final das contas, 98% dos filmes são sobre isso, sobre transformação de personagens.

Secar o juntão é mole, rapidamente tudo que está sobrando vai caindo. Menos gordura e mais músculos. Quem não gosta? Em cinco dias, chegamos ao primeiro corte que baixou para duas horas e vinte e cinco minutos. Tirar 15 minutos de cara foi um bom começo, mas ainda faltava tirar mais uns 15. É neste ponto que a coisa vai ficando mais complicada. Tem um momento em que as cenas já chegaram no tamanho certo, mas o filme ainda está longo. Se cortar mais as cenas, o filme fica frenético, sem clima, mas se não diminuir a duração total, o filme fica arrastado. Filme lento é bom mas filme arrastado é imperdoável e não há nada pior do que ouvir na saída do cinema o camarada dizer: “O filme é bom mas poderia ter 15 minutos a menos”. “Vá lá tentar cortar então, sabichão!”, dá vontade de responder. Mas como este não é um problema do espectador, a solução foi pegar estas duas horas e vinte e cinco que tínhamos no primeiro corte e partir para a terceira rodada da montagem em direção ao segundo corte.

Nesta nova passada, como tudo que estava visivelmente sobrando já havia caído, os cortes são praticamente invisíveis. Vão embora as pausas nas falas dos atores. (Alguns atores tendem a alongar as suas pausas ou para ganhar mais tempo de tela ou, às vezes, por terem esquecido suas falas. Cortando de uma câmera para a outra esse, tempo morto some.) Uma caminhada pelo corredor é abreviada, uma chave que gira na porta é substituída apenas pelo som, cortam-se dois passos do ator em direção ao carro, falas de início de cena são sobrepostas na cena anterior, textos que não sejam realmente importantes são eliminados e, usando um grande repertório de truques como estes, o filme vai ganhando ritmo. Nesta terceira passada, chegamos a duas horas e dezessete minutos, melhor, mas pelo menos mais uns 10 minutos devem sair só que já não há mais de onde tirar gordura então esta é a hora de pensar quais cenas podem ser despachadas direto para o DVD, em geral cenas que são boas mas que manteriam a história em pé se fossem cortadas. É neste ponto que estou hoje. Cortando cenas boas.

Fora o ritmo, muitas vezes algumas cenas simplesmente não chegaram onde deveriam ter chegado, ou pela direção óbvia (que muita gente chama de clássica), ou pela atuação, ou porque alguma fala que deveria estar lá não foi escrita. Nesta hora entra a operação salvação de cena. Com o Daniel, aprendi que quando um problema parece insolúvel mas a cena não pode ser cortada do filme, ao invés de ficar adicionando planos ou gravando novas falas para tentar deixa-la mais clara ou mais eficiente a melhor solução é seca-la ao máximo, passar o mais rápido possível por ela na esperança de que o espectador não perceba o problema. Aprendi também que ficar pondo e tirando fotogramas aqui e ali, (frame-fucking, como chamam os americanos) nunca vai resolver o problema de uma cena mal resolvida anteriormente. Há também uma infinidade de truques de montagem para deixar ao menos digno o que foi mal feito na filmagem, mas às vezes uma cena parece mesmo condenada ao fracasso e pode comprometer o filme todo, essa é sempre uma constatação dolorosa quando acontece. E sempre acontece. Por sorte, neste filme estamos livres deste mal, aqui podemos sempre contar com um último recurso que funciona como uma espécie de colete-salva-vidas. Infalível:

Tudo na cena está ruim? Corta para um close da Julianne Moore. Aí é xeque-mate.


PS: Fui assistir a “A Casa de Alice”. Filmaço. Direção muito sensível. Um ator melhor do que o outro. (Aviso: não sou amigo do diretor e nem dos atores, é só um toque porque o filme é bom mesmo.)

segunda-feira, 12 de novembro de 2007

Post 12: Sobre filmar em SP, Síntese e Culpa



Escrevi este texto faz um tempo, depois reli, achei meio desinteressante e fui deixando de lado. Ontem, na festa de casamento de uma prima, me perguntaram se eu iria interromper esse diário assim sem aviso, como o final de um filme do Kiesloswsky. Depois deste comentário, mesmo achando o texto meio desinteressante, resolvi prosseguir nesta empreitada. Aí vai:

Quando os personagens desta história saem do asilo, não há mais carros ou aviões ou qualquer tipo de motor ligado na cidade, então precisávamos de um lugar silencioso para filmar em São Paulo. Encontramos na Granja Vianna a casa do Márcio Amaral, coincidentemente meu amigo e vizinho. Irresponsavelmente, ele topou se mudar com a família para um hotel por um mês e deixou que invadíssemos sua casa, que tirássemos todos os móveis, destruíssemos seu jardim e ainda deixássemos o Juca, seu labrador, deprimido. Não temos cerca separando nossos terrenos, então literalmente, eu acordava, atravessava o jardim e estava no set. Um filme deste tamanho ficou parecido com filme de estudante, filmado praticamente no quintal. A grande vantagem de ter feito assim não foram só os minutos a mais de sono todos os dias, mas a privacidade. É mais constrangedor para alguém tocar a campainha de uma casa e pedir para entrar para dar uma olhadinha, então o set foi sossegado.

Rodar no meio da cidade, porém, foi mais movimentado. Ao chegarmos nas locações, sempre havia gente nos esperando, eu não entendia como as pessoas adivinhavam onde estaríamos rodando, até um dos curiosos me explicar que havia um grupo no Orkut que divulgava nosso plano de filmagem regularmente. Aliás, não entendo muito o interesse das pessoas em assistir a filmagens. Filmagem é a coisa mais chata se você não está trabalhando. Talvez mais chato do que assistir a um dentista obturando. (Eu nunca liguei para minha dentista para pedir para ir vê-la fazer uma obturação). Mas não atrapalhou, pois a platéia sempre colaborava, o problema é que tínhamos a idéia de não mostrar imagens do filme antes dele ser lançado, nem mesmo no trailler, mas, com esse vazamento de informação, alguns jornais mandaram fotógrafos e tivemos que desistir desta estratégia. O Estado de SP nos pediu permissão e publicou uma reprodução que fizemos de um quadro do Brueguel. É uma bela foto, mas me arrependi de ter liberado. Mas agora que já foi feito, o melhor é escancarar de vez. Eis aí a foto do nosso set pelo Estadão e abaixo o Brueguel:






A idéia de reproduzir quadros num filme não é original mas, nesta história sobre visão, trazer referências do imaginário humano ao longo do tempo pareceu fazer algum sentido. Fora este Brueguel, quem conhece um pouco de pintura vai identificar referências a Hieronymus Bosch, Rembrandt, Malevitch, alguns dadaístas, cubistas, Francis Bacon, gravuras japonesas, e principalmente algumas telas do Lucien Freud que nem referências são, são cópias mesmo. Homenagem. O que me espantou ao reproduzir estes quadros foi constatar que apesar do nosso empenho em buscar imagens expressivas no filme, cada vez que estas referências aparecem na tela elas saltam. Isso talvez explique porque estes artistas resistiriam ao tempo. Em seus trabalhos, conseguiram alguma espécie de síntese que mesmo nessas cópias, fora do seu tempo, ainda continuam expressivas.

Buscar imagens/síntese que expressem o filme como um todo é uma espécie de distúrbio que tenho. Sempre que penso em algum filme, me vem associada uma imagem como se fosse um registro emocional das duas horas de projeção. Às vezes são imagens espetaculares. Por exemplo: Penso em “Fitzcarraldo”, do Herzog e me vem a imagem daquele barco preso por cordas puxadas por centenas de índios sendo arrastado morro acima, não por acaso a imagem do pôster. Mas às vezes são imagens bem mais simples, como a expressão da Liv Ulman olhando a Ingrid Bergman tocar Sonata ao Luar em “Sonata de Outono” ou a mãe do Bambi correndo na neve antes de ser baleada pelos caçadores. Sempre que ouço a expressão “cinema brasileiro” me vem um plano de “Vidas Secas”, aquela família andando contra a claridade do chão árido. Ao fazer um filme, fico tentando criar ou encontrar uma imagem que tenha este poder de síntese. Lembro que em “CDD” havia me proposto a nunca filmar garotos apontando a arma em direção à câmera, um enquadramento clichê de filmes policiais, mas lá pelo meio da filmagem comecei a perceber que não tínhamos uma imagem forte ainda e apelei. Acabei rodando uma cena onde o Douglas Silva, Dadinho, apontava seu trinta-e-oito para a câmera. Intencionalmente, coloquei-o na frente de uma bananeira e pedi para ele dar risada enquanto atirasse. Foi uma atitude mais marqueteira do que artística, confesso. Imaginei que essa poderia ser uma imagem surpreendente do Brasil, o clima tropical, a alegria do moleque negro, não por causa de um samba ou de um gol, mas pela posse de uma arma. Dois anos depois, vi no metrô de Paris, em enormes pôsters, o Douglas apontando seu trinta-e-oitão para a francesada nas plataformas. Mesmo sendo uma imagem contrária ao que eu queria falar com o filme, onde a violência não deveria ser espetacularizada, os distribuidores franceses viram ali uma espécie de síntese e escolheram aquela imagem para representar o filme.

Descobrir qual é a imagem/síntese de um filme me parece tão importante quanto conseguir formular um “story-line” (resumir o filme em apenas uma frase). Em “Blindness” eu não sei exatamente qual será esta imagem/síntese, mas sempre imaginei um filme opressivamente luminoso. Em nossas 12 semanas de filmagens, conseguimos bons momentos de brancura e agora torço para que no meio das 45 horas de material rodado ou dos 3.888.000 fotogramas expostos, haja ao menos um que consiga traduzir esta história. Se não houver paciência, pois as filmagens já acabaram. E acabaram com festas e jantares. Como sempre.

A Ciça, minha mulher, e eu chegamos meia hora antes do jantar de despedida, que foi oferecido pelo Hotel Emiliano, e fomos direto para o quarto da Julianne. O Mark Rufallo foi até seu quarto pegar uma garrafa de vinho branco, nos espalhamos no sofá e coloquei o DVD com algumas cenas do filme já montadas. Não chamamos mais ninguém para assistir, só nós quatro. É duro este tipo de apresentação, é como fazer uma strip-tease, muita exposição, me sinto constrangido.

A Julianne parece que gostou da meia hora a que assistiu e só achou que estava meio exagerada numa cena em que ela chora. Fiquei de rever o material. O Mark, como era de se esperar, elogiou o que viu, elogiou a Julianne, mas ficou arrasado com sua própria performance. Típico. “Eu disse que você deveria ter chamado o Sean Penn”, falou. De fato algumas vezes, depois de acabarmos uma cena ele dizia: “Acho que o Sean Penn ainda está disponível, não me ofendo se você quiser me substituir”. Uma daquelas piadas que não são totalmente piada. Já vi muita gente culpada na vida, mas o Mark bate todos os recordes. É pior do que eu.

Ontem, o Gael (que deu um olé na imprensa brasileira dizendo que tinha voltado para o México, mas ficou tirando umas férias no Brasil) passou na sala de montagem para ver um pouco do filme e depois de elogiar as performances dos colegas me perguntou se algum ator já havia assistido a alguma coisa. Disse que só o Mark e a Julianne haviam visto algumas cenas. “E o Mark achou que estava péssimo, certo?”, perguntou. Risadas. O pior (ou melhor) é que ele está bem para burro, começa o filme como um médico meio arrogante, muito seguro de si mas, depois que perde a visão, começa a se enxergar. E desmonta. Ele parece uma pessoa de verdade, e não o típico protagonista machão de cinema americano, mas vá tentar convencê-lo disso. Talvez a solução para o seu caso seja aumentar o número de sessões de análise ou trocar de analista. Vou sugerir.

E agora pretendo ficar bestando por uns 15 dias, até o início de Novembro, quando começo a acompanhar a montagem em tempo integral.

Coitado do Daniel.

segunda-feira, 29 de outubro de 2007

Post 11: Sobre bobeira, gincanas e posições de câmera.

No foto: Don McKellar (de camiseta vinho), Winnie (continuista), eu, Cesar Charlone, Julianne Moore, Rhaul (dolly grip), e, de costas, a careca do Walter Gasparovic (assistente). Sobre o monitor, meu roteiro de capa azul (que já não está mais entre nós)


Já eram 4h37 da madrugada e os pardais começaram a piar sem graça. Ouvir passarinho cantando antes de ir dormir, em geral, me deixa deprimido. Comecei a rir de bobeira, arranquei o fone do ouvido, desliguei o walkie-talkie e desisti. Estávamos em 10 pessoas no câmera-car do Stanley, rodando pelo centro de São Paulo, sonados, depois de 14 horas de filmagem na rua. Eu olhava para os quatro monitores que transmitiam o sinal das duas câmeras que estavam na pick-up, e de outras duas escondidas dentro do carro que o Don Mc’Kellar dirigia, e torcia por oito segundos de alguma imagem que completasse a cena em que o Ladrão fica cego, mas sempre alguma coisa atrapalhava. Atrás do carro do Don/Ladrão vinha um comboio com uma limusine branca enorme, um táxi destes amarelos e outros carros simulando uma rua movimentada em alguma cidade do mundo. O Don tinha que seguir o câmera-car mantendo a mesma velocidade e uma distância fixa, tarefa complicada nas ruas de S. Paulo, cheias de faróis, mais complicada ainda pelo fato dele não dirigir regularmente e nunca ter guiado um carro com marchas. Isso já seria um bom desafio, mas havia um agravante, o Don é míope mas seu personagem não é, então tinha que fazer tudo isso sem óculos e para completar, a cada 10 segundos, o Serjão, eletricista, o ofuscava direcionando um refletor para seus olhos simulando faróis de outros carros. A cerejinha neste bolo de convite-ao-acidente é que ele dirigia um carro protótipo da Fiat, movido a benzina, e cada vez que parava num sinal o carro morria e não pegava mais. Quando ouvi o primeiro pardal, olhei o relógio e me dei conta que estávamos parados há quatro minutos esperando o Fiat se mover. Cansados, sem reação, apenas olhávamos para o carro lá, paradão. Contávamos só com a ajuda da Analia, operadora de câmera que estava escondida no banco de trás do Fiat com o Don e poderia ajudá-lo. Então, o César anunciou que, além de não falar inglês, a Anália não sabia dirigir. Nosso bote salva-vidas naufragou. “Xeque-mate”, pensei. E joguei a toalha.

Minha disposição para este tipo de gincana já não é mais a que era. Madrugadas, movimentos de grua complicados, muitos figurantes, cenários enormes, cenas com muitas situações paralelas a serem mostradas me dão uma certa preguiça. Filmar com muitas câmeras também complica bem. O Gui, som direto, que o diga. Ele vive sinucado sem ter por onde entrar com seu microfone. “Tem câmera por todo lado”. Reclama. “Dá seu jeito!”, respondo. E ele vai dando.

Rodar com muitas câmeras é bom por não termos que repetir a mesma cena 40 vezes para conseguir diversos ângulos, e é ótimo pois dá muita cobertura para o montador; mas, durante a filmagem, muitos ângulos simultâneos pode ser dispersivo. Neste filme, o César Charlone e eu aprimoramos uma boa maneira de trabalharmos com quatro câmeras, pode até ser chamado de método, tem uma certa lógica, contrariando o que pensam os assistentes de direção e parte da equipe. Eis o “método” (que obviamente não é sempre seguido com o rigor que descrevo aqui):

Para planos gerais da cidade, ou imagens com muitos detalhes, estamos usando uma câmera chamada Vista Vision. Ela roda em 64mm, gera uma imagem bem definida e estável. Em geral, esta câmera só trabalha em algumas externas, onde é usada apenas para um ou dois ângulos pré-determinados e depois descansa o resto do dia. Ela consome negativo como um Dodge Dart consumia gasolina – ou, para quem não sabe o que é um Dodge Dart, como um deputado consome verba de representação. Vorazmente.

Depois, temos a câmera A, uma 35mm que conta a história. Quando é possível criar uma imagem instigante e narrativa ao mesmo tempo, ótimo. Se não for possível, esta câmera tem que priorizar a clareza da história, ou seja, mostrar o lugar onde estão os atores, cobrir os diálogos e as reações dos personagens deixando claras as intenções da cena. É meio convencional às vezes, mas resolve.

Rodando ao mesmo tempo, temos sempre uma câmera B, que tenta contar a mesma história de forma mais indireta. Cobre a cena através de reflexos, pelas costas dos atores, faz os closes, busca enquadramentos menos óbvios. Mostra a nuca em vez do rosto, uma sombra em vez do corpo do ator. Sugere a história mais do que a mostra. Se a câmera A é prosa, a câmera B é poesia. Desta câmera deverão sair “os melhores momentos” do filme, mas como no futebol, sabemos que só a jogada de efeito não funciona. É preciso ter uma câmera “A” levantando para esta “B” cortar.

Finalmente, há uma câmera 16mm que entregamos ao acaso, ou para Deus, como diz o César. Usamos basicamente para desperdiçar negativo. Ela em geral fica amarrada com fita crepe num canto e quase sempre roda sem operador, é acionada por quem estiver mais perto. O aproveitamento das imagens desta câmera-do-acaso é baixo. É como lançar uma rede sem grandes expectativas para eventualmente puxarmos imagens inesperadas. E acontece. Curioso que sempre chamamos esta atitude de buscar imagens ao acaso de “pescaria”, achei que nós tivéssemos inventado esta expressão, mas descobri agora, com o canadenses , que eles também usam a mesma expressão: “Fishing”.

O uso de câmeras simultâneas não é muito habitual no Brasil, pois aparentemente encarece um filme. É preciso mais equipe de câmera, gasta-se mais com aluguel de equipamento ou com negativo. Mas se computarmos a redução do numero de diárias que isso gera, acho que a conta se fecha a favor. Neste caso tínhamos orçado 57 dias de filmagem mas devemos terminar o filme em 50. Essa semana economizada está diretamente relacionada ao monte de câmeras e (talvez) esta economia compense os custos extras mencionados. Mas, mesmo que não haja vantagens econômicas, essa maneira de filmar vale a pena. Ela nos permite quase nunca repetirmos um mesmo enquadramento em duas horas de filme e libera o ator que, nem que queira, consegue interpretar para a câmera, já que está cercado. Também me livra do chato (e às vezes inútil) trabalho de decupar o filme. O que fazemos é montar a cena como se fosse teatro, sem pensar em câmeras e depois cobrimos o máximo possível. A decupagem acontece na sala de montagem, o que é uma vantagem, como tenho constatado, pois muitas vezes entre a imagem bem enquadrada da câmera A, que foi previamente planejada, ou a mesma cena meio encoberta da câmera B temos usado a segunda opção na montagem. Neste filme, que é sobre olhar, mas não ver, esconder um pouco o que se passa ajuda a colocar o espectador no mundo dos personagens cegos, quero crer. De qualquer maneira, eu dificilmente planejaria um enquadramento onde um ator cobre o outro intencionalmente. Esses momentos acontecem por sorte e às vezes são ótimos.

O César, em geral, defende que a história seja contada mais pelas imagens e sons e reclama da quantidade de palavras do roteiro. Certamente o Marco Antonio Guimarães, que vai fazer a trilha, apoiará esta visão. Atores e roteirista gostam de diálogos e às vezes não entendem o exagero de posições de câmera que usamos. Eu tento ter o máximo dos dois mundos. Apoio sempre sugestões de novos pontos de vista que não haviam me ocorrido e incentivo os atores a aumentar seus textos para ajudá-los a entrar na história. Faço isso mesmo sabendo que cortarei o excesso de palavras na montagem, ou que dificilmente usarei um determinado ângulo que está sendo rodado. Mas nunca se sabe, então arrisco. O tempero entre a narrativa das palavras e das imagens vai ser encontrado na montagem, que é quando realmente o filme toma forma. Já aprendi que numa sala fechada, tranqüila e concentrada, nem sempre a decisão que me pareceu mais acertada no set prevalecerá, então, na dúvida entre uma opção ou outra, rodo as duas.

Admiro a capacidade de abstração de diretores que conseguem pensar seus filmes de ponta a ponta com antecedência, diretores que desenham storyboards e depois cumprem à risca o que planejaram. Já tentei fazer isso, mas fico tão focado em fazer o que planejei que acabo não vendo as idéias vivas que acontecem no set. Já filmei muito como um clarinetista que toca seguindo uma partitura, hoje acho que filmo mais como jazz. Você me entende.

segunda-feira, 22 de outubro de 2007

Post 10: Sobre Cabeça de Vento, Narradores e Homenagens

Mark Rufallo respira o ar do rio Pinheiros
(foto de Yoshino Kimura, a Mulher do Primeiro Homem Cego)

Parece uma maldição que me persegue. Perdi meu roteiro novamente. Digo novamente pois também perdi meu roteiro três semanas antes de acabar “Cidade de Deus” e o mesmo aconteceu com o roteiro do “Jardineiro Fiel”. Claro que eu poderia imprimir uma nova cópia, mas nem é o caso, de tanto lê-lo já decorei completamente a história. O que me faz falta não são os diálogos ou as descrições das cenas, mas sim as anotações e idéias que fui rabiscando nos cantos ou no verso das páginas desde dezembro do ano passado. As idéias que me pareceram boas eu até lembro, mas certamente vou esquecer detalhes que nunca chegarão a ser filmados. Merda. O pior é que eu tenho certeza de onde deixei. Estava na prateleira de livros no cenário da casa do Médico. Alguém tirou do cenário, provavelmente para não aparecer em quadro, enfiou numa caixa qualquer e eu nunca mais vou vê-lo, já sei. Agora tenho que terminar de rodar assim mesmo, às cegas. Já vi este filme.

O destino de um roteiro é sempre muito triste, esse que perdi levou 5 ou 6 anos para ser concluído e no dia seguinte em que acabarmos a filmagem, passaria a ser papel inútil. Pouquíssima gente vai se dar ao trabalho de ler aquelas páginas novamente. As cópias que tiverem sorte serão recicladas, a maioria vai para o lixo mesmo. É triste porque pouca gente se dá conta da complexidade e do número de questões que envolve a criação de um roteiro. Quer um exemplo?

Quem conta a história? Esta é em geral uma das primeiras decisões que um escritor tem que tomar. No cinema é a mesma coisa, a escolha de quem será o narrador transforma completamente um filme. Nos outros (poucos) filmes que fiz esta questão é facilmente respondida mas nessa Cegueira a coisa é mais complexa. Vou teorizar um pouco. Para quem não gosta de blá, blá, blá, até o próximo post.

No começo de “Blindness”, quem conta a história é o diretor (eu mesmo) com a ajuda da equipe, claro. Conto a história colocando a câmera, os microfones e com eles, o espectador, sempre no meio da ação. Por eu ser um narrador privilegiado, que já leu o roteiro até o final, você, o espectador, vai perceber que há uma epidemia se alastrando antes mesmo que os personagens se dêem conta disso, coitados. Como também sou um contador que está fora da trama, posso pular de um personagem para outro e acelerar os acontecimentos para chegar mais rápido ao segundo ato quando todo mundo vai para uma quarentena num asilo. (Sinto muito para quem não leu o livro e não sabe do que estou falando. Aliás, quem não leu deveria ler. É livro que se devora num final de semana). Voltando: Quando a ação se desloca da cidade para o asilo o contador da história deixa de ser o diretor e passa a ser a Mulher do Médico. É através do seu olhar que vemos o que acontece. Colada nela, a câmera fica trancada no asilo de quarentena também, vê ou sabe apenas o que a Mulher do Médico vê e sabe. Esse é o momento em que a trama desacelera um pouco para que o espectador embarque na viagem desta personagem vivendo junto sua experiência. Por sorte tenho a Julianne Moore a bordo e definitivamente ela sabe como fazer os espectadores compartilharem as experiências e emoções desta Mulher do Médico.

A história segue, a situação evolui devagar. Passado um pouco da metade do filme entra em cena um novo personagem, o Velho da Venda Preta (Danny Glover), para mim um alter-ego do Saramago, com o já disse aqui. De repente, sem mais, ele começa a narrar o que se passa no asilo. Diferente do olhar da Mulher do Médico, que nos mostra os fatos, a voz deste narrador tardio, o Velho da Venda Preta, nos conta o que se passa na cabeça dos personagens, conta uma história mais profunda narrando as implicações e conseqüências do que acontece, criando uma nova camada de leitura para o filme. Então, no terceiro ato, quando todos os personagens voltam para a cidade, os dois outros narradores, o diretor e a Mulher do Médico, se juntam ao Velho da Venda Preta e a história passa a ser narrada alternadamente pelo olhar dela, pela voz dele e pela câmera, que coloco onde bem entendo (ou onde o César sugere ou permite).

Esta mudança de narrador afeta a linguagem e estabelece o ritmo do filme. O primeiro ato é mais clássico, a história avança agilmente da maneira como acontece na maioria dos filmes. No segundo ato, o da observação da Mulher do Médico, o filme viaja mais, é menos objetivo e divaga como uma mulher. (Sim. As mulheres são melhores em divagações do que os homens) Finalmente, quando entra a narração do Velho da Venda Preta o filme volta a ter uma trama mais linear, mas somada a uma leitura do que se passa. Essas três maneiras de contar a história dão a cara ao filme e isso já estava indicado no roteiro. Ou seja, qualquer decisão do roteirista pode transformar o filme radicalmente não só em seu conteúdo, mas em seu formato. Há uma pequena guerra nos EUA no momento, entre os roteiristas e os estúdios. Eles querem ser reconhecidos como autores dos filmes no mesmo patamar que os diretores com cachês e prestígio igual. Acho mais do que justa esta reivindicação. Só porque o que escrevem vai para o lixo no final da filmagem não quer dizer que seu trabalho não tenha a mesma, ou às vezes maior, importância do que o trabalho do diretor.

Muitas vezes quando penso num roteiro, fico quebrando a cabeça para tentar achar uma trama que nunca pare de se desenrolar, (essa é a primeira lição que se aprende em cursos de roteiro, se uma cena não transforma a história ela está sobrando e deve ser cortada). Com esse filme aprendi que às vezes não é preciso fazer a trama andar, o simples deslocamento do ponto de vista, a troca de narrador, gera um enorme movimento mesmo que a ação pare. Isso era apenas uma idéia teórica que agora confirmei na prática. E parece funcionar. Aliás, não é nenhuma novidade a troca de narrador num filme. Muitos filmes são apoiados nesta idéia, uma mesma história vista por diferentes ópticas. Minha bíblia do roteiro, que é “Goodfellas” (os “Bons Companheiros”), escrito pelo mesmo autor do livro, Nicholas Pileggi, faz isso muito bem. Quem conta a história da Máfia no filme é o Henry Hill, (personagem do Ray Liotta) mas de uma hora para outra, sem aviso, sua mulher, Karen (Lorraine Bracco) passa a narrar. O Bráulio Mantovani e eu até tentamos fazer o mesmo em “Cidade de Deus”, mas como aquela história já era muito confusa resolvemos deixar apenas um narrador, o Buscapé. Só não copiamos “Goodfellas” por que não deu certo.

Os bons filmes estão aí para serem copiados, ou “homenageados”. Não são poucas as “homenagens” que presto.

(E se alguém encontrar um fichário de capa de plástico azul com um roteiro todo rabiscado dentro, já sabe. É meu. Façam a gentileza de devolver ou me informar através de um comentário neste blog, que tenho lido regularmente).

quinta-feira, 18 de outubro de 2007

Post 9: Sobre simplicidade, Japoneses e Sacadas.

Iskye Isseya - Primeiro Homem Cego (foto de Alexandre Hermel)


Tirei um peso das costas. Explico:
No roteiro, há uma relação conflituosa entre o Primeiro Homem Cego e A Mulher do Primeiro Homem Cego. Eles já são apresentados brigando. A Mulher é tão egoísta que não consegue ficar ao lado do marido nem quando ele acaba de perder a visão. No livro não é assim. Estranhei esse tom hostil do roteiro a princípio, mas depois vi que havia ali uma oportunidade para a criação de um bom arco dramático para o casal. Roteiristas sabem que o conflito é a melhor gasolina para qualquer história.

Para o papel do Primeiro Homem Cego e sua mulher, convidei dois atores japoneses, Yoshino Kimura e Yuske Isseya, que coincidentemente começaram a namorar assim que foram escalados. Na história eles cegam, vão para uma quarentena, mas mesmo assim quase não se falam. Ao pensar nessa situação sem saída deste casal me veio uma imagem: Os dois sentados num banco diante de um enorme muro, no meio do lixo. A imagem então virou uma cena, que já filmei. Eles começam lado a lado, estão banhados pela cálida luz de uma fogueira que crepita aconchegantemente. Tudo ao redor está desfocado, a imagem é romântica e ele tenta reconforta-la. Havia um texto no roteiro, mas o Yuske me pediu para substituí-lo por uma história real de uma experiência que ele viveu com a Yoshino, que aconteceu também na frente de uma fogueira. Ela não sabia que ele iria mudar completamente o texto.

Rodamos as câmeras sem ensaiar ou avisá-la da mudança, e ele começou: “Você se lembra do dia em que nos conhecemos? Foi no ano novo, em um templo, diante de um fogo como esse, estava frio, nós nos encostamos e ficamos aquecidos, não queríamos mais nos descolar”. E continuou acrescentando alguns detalhes daquele dia num tom emocional. Neste momento ela já estava lacrimejando. A cena me pareceu linda, mesmo eu não entendendo patavina, pois foi falada em japonês.

“-Você se lembra daquele dia?”, concluiu. Então, como um samurai desembainhando a espada, ela responde: - “Fique quieto. Eu não consigo fingir”. Nesta hora vou cortar da imagem romântica em close e revelar que estão sentados no banco diante do tal muro e revelamos que o fogo vem de uma pilha de lixo sendo queimado. O foco da imagem “real” arrasa a imaginação desfocada. Não há mais comunicação entre eles. Nem brigar ela briga e a relação dos dois piora ainda mais. (Aliás, tudo parece só piorar neste filme.)

Como é sempre mais fácil derrubar do que construir, foi bico plantar esse conflito entre o casal, mas depois era preciso criar uma solução para eles. Durante semanas conversei com os atores e com o roteirista sobre possíveis cenas para a reconciliação dos personagens. Um pedido de desculpas, sexo, discutiriam a relação? Todos os caminhos me pareciam demasiadamente melodramáticos ou óbvios. Eu gostaria de encontrar algo bem simples. A simplicidade é sempre mais tocante, mas é impressionante como só o repertório de clichês vem à tona nestes momentos. O tempo passava e nada. Fomos para o Uruguai e a necessidade de acharmos um final para a trama do casal começou a aumentar. Já estamos rodando as últimas cenas da história (ainda falta rodar todo o início) e até hoje não tínhamos uma saída para este conflito plantado. Então, essa tarde, sentado no set com os atores, o próprio Yuske me entregou a solução de bandeja: Como há uma lareira na casa do Médico para onde todos os personagens vão no final, a idéia seria colocar o casal ali , ao lado do fogo, fazer um enquadramento muito parecido com o da cena do muro e então a Mulher do Primeiro Homem Cego, que estaria em silêncio ao lado do marido, talvez pensando sobre os vários acontecimentos pelos quais passou durante as últimas semanas, de repente, vira-se para ele e responde a pergunta de semanas atrás:
“Eu me lembro daquele dia sim”. Ele sorri levemente. E assim a conexão entre os dois se restabelece. Ponto.

Claro que sem eu descrever o percurso dos personagens daquele dia do muro até esse momento essa solução parece meio besta, mas a idéia é mostrar que toda a experiência e o sofrimento pelo qual ela passou de certa forma destamparam alguma coisa nela (a visão ?) e que nesse restabelecimento do contato com o marido está sintetizada sua transformação. Bonito, não? (Bem, talvez assim, lido, não pareça tão bom, mas com aqueles atores e falado em japonês acho que vai ficar bacana.)

De qualquer maneira gosto destes momentos, quando alguma peça que estava faltando se encaixa no quebra-cabeça, quando um corte modifica uma cena, um movimento de câmera parece ter alma, ou ainda uma música colocada veste uma seqüência. São momentos vivos. Ser surpreendido por eles é o maior prazer desta profissão. Gostaria de acreditar que são também esses momentos que conectam os espectadores aos filmes, mas imagino que 95% destas sacadas se percam em algum lugar entre a tela e as poltronas do cinema e, como o replicante no final de Blade Runner, me pergunto:
“Onde vão parar todos esses momentos?”

Mesmo assim trabalho forte pelos 5% que podem chegar até o destino, que é a mente do camarada sentado na poltrona olhando para a tela branca banhada pela luz do projetor.

Há um pouco de Sísifo neste meu ofício.

sexta-feira, 5 de outubro de 2007

Post 8: Sobre Esmalte, Maconha e Lance de Dados.



Durante um ensaio, o Gael (García Bernal) andava vendado por um corredor cheio de lixo cenográfico quando pisou num tubinho circular. Abaixou-se, pegou o volume sob seus pés e sem saber do que se tratava, desrosqueou a tampinha e cheirou. Era esmalte. Teve um impulso de passar na unha, mas se conteve. Esta pequena experiência casual modificou a linha de seu personagem e, com isso, o filme todo.

Convidei o Gael para fazer o papel do Rei da Camarata 3 porque imaginei que ser ia mais surpreendente um vilão boa pinta, com cara de garotão inofensivo. Já haviam me dito que ele é um ator que costuma interferir bastante na criação de seus personagens e essa foi mais uma razão para chama-lo. Gosto de ouvir idéias alheias e as uso sempre. Quando a gente coloca fichas no inesperado, ele acontece. Paguei para ver.

O Gael chegou no Canadá só em nossa terceira semana de filmagens, e foi no seu primeiro dia de ensaio que ele pisou no tal vidrinho. Ao cheirar o esmalte, pensou que o mesmo poderia acontecer com seu personagem e, portanto, o Rei da Camarata 3 poderia perfeitamente estar com as unhas pintadas na cena onde promove uma orgia com as mulheres das outras camaratas. Achei a idéia meio esquisita, mas dei corda. Não queria cortar a onda dele no nosso primeiro dia de trabalho. Quando a Micheline, maquiadora, soube disso veio me perguntar se eu queria mesmo pintar as unhas dele de vermelho. Minimizei:
“A cena é escura, nem vai dar para ver direito. Allons y*”
(* “Vamos nessa”, em francês. Ela é de Quebec)

Para que o personagem não fosse confundido como uma drag-queen em potencial, ou para que o espectador não achasse que estivesse assistindo a “Má Educação-II” ao ver o mexicano com as unhas pintadas, antes de rodar a primeira cena do Rei pedi que ele encontrasse o esmalte por acaso, enquanto falava seu texto. A idéia era fazer o uso do esmalte parecer mais acidental e menos intencional. Só que ele foi muito mais longe e fez metade da cena mais concentrado no esmalte do que em seu texto. Achou o frasco, pegou, abriu, cheirou, passou o esmalte em cada unha, assoprou, esbarrou no vidrinho que caiu no chão, saiu procurando. Ia falando com os outros personagens completamente distraído, interessado apenas no esmalte. A cada tomada, ele acrescentava mais algum detalhe desta historinha paralela. O resultado ficou muito engraçado. O vilão cruel ficou parecendo um trapalhão que havia fumado três baseados, alheio ao sofrimento que estava provocando ao seu redor. Um cara mais irresponsável do que perverso e talvez por isso mesmo até mais assustador. Gostamos do resultado.

Uma vez encontrado este tom, resolvemos fazer as outras cenas do Rei na mesma direção. Com isso esse vilão meio xéu-bléu-bléu acabou virando o personagem mais cômico do filme. O espectador deverá detestá-lo por suas atitudes mas, ao mesmo tempo, poderá ter alguma simpatia pelo seu tom de moleque descompromissado. Humor é sempre um golpe baixo. Difícil resistir.

E foi assim que aquele pequeno incidente no corredor funcionou como um gatilho para que o Gael inventasse seu personagem. O tom encontrado trouxe oxigênio para a história e abriu um viés que não estava nem no roteiro e nem na minha cabeça no início das filmagens.

Lição do dia:
Criação é assim. Como um lance de dados, jamais abolirá o acaso.

quarta-feira, 3 de outubro de 2007

Post 7: Sobre Frio, Chivitos e Sistema de Irrigação



Depois dos abraços de despedida, fui ao mercado de Montevideo com o Quico (meu filho) comer o tal do Chivito, bomba de gordura e caloria, mas que faz jus à fama. Viemos digerindo pela Calle Piedras ouvindo um som que vinha da rua: “Na Boquinha da Garrafa”, remix. Acredita? A esquina com a Collon havia sido fechada, a produção colocou um DJ na calçada, cerveja e vinho numa mesa e estava rolando nossa “wrap-party” uruguaia. Wrap-parties são as festas de despedidas dos filmes, são sempre emocionais pois para a maioria das pessoas é um adeus para sempre. Já fizemos a wrap-party canadense e agora falta ainda a brasileira. Os uruguaios estavam com a corda toda e sacudiram la cristaleira.

A idéia de vir filmar em Montevideo nasceu como uma piada. Em março, andávamos pelo centro de São Paulo procurando dois quarteirões para serem transformados em uma rua de comércio sofisticado. Mas, frustrados com a quantidade de fios, placas e deterioração das calçadas e das ruas de São Paulo, começamos a considerar outras cidades para estas cenas. Campinas? Curitiba? No meio desta conversa, ali no Parque Dom Pedro, o César Charlone, fotógrafo, veio com a sugestão: “Porque não vamos para Montevideo?”.

Apesar de estar há 30 anos no Brasil ele é um Uruguaio patriota e costuma engrandecer descaradamente as qualidades de seu pequeno país. Rimos da idéia absurda e continuamos a nos deprimir com o abandono da zona cerealista de São Paulo. Mas Uruguaios são persistentes. Uma semana depois, o César nos entregou um pacote de fotos do centro velho de Montevideo. Eram fotos de um conjunto de prédios muito bonitos em ruas praticamente vazias. Parecia um estúdio.

“Parece bom, mas nunca vamos conseguir fechar um lugar destes durante a semana”, expliquei.

“As fotos foram tiradas sexta feira”, ele retrucou.

“Sério?”

A idéia maluca soou mais razoável e decidimos dar um pulo em Montevideo só para conferir. “Ver-te e amar-te foi um só instante”, recitou o poeta parnasiano dentro de mim.

Decidi filmar no Uruguai. E fomos. (Sempre me impressiono ao ver como os diretores são mimados). Só depois de nos vermos encalacrados na burocracia entre os dois paises é que percebemos que este negocio de Mercosul é mera balela. Levar qualquer coisa de um país para o outro é como tentar entrar com uma Ak-47 na área de embarque de um aeroporto americano. Mas já era tarde para recuar. . O resto é história.

Fechamos dois quarteirões da Collon e mais parte das transversais. O Tulé, diretor de arte, transformou os casarões abandonados em restaurantes, cafés, livrarias, pet-shop, farmácia, uma loja da C&A (que entrou apoiando o filme) , uma loja do Alexandre Herchcovitch – que nos deu um monte roupas e ainda fez uma participação bebendo água da sarjeta. Nos preparamos bem para aquele dia de filmagem: havia quatro caminhões pipa e um sistema de irrigação complexo que criava uma chuva artificial em quase 200 metros de rua. Com 10 atores e uma centena de figurantes molhados, no frio, com vento, cachorro, quatro câmeras rodando ao mesmo tempo e apenas um dia para filmar esta seqüência, eu tinha tudo para viver o pior dia de minha vida. Mark Ruffalo prometeu ficar fazendo piada o tempo todo para levantar meu moral. Rodamos antes outras ceninhas em Montevideo até chegar o dia da esperada diária de chuva e desespero.

Dormi mal na noite anterior. Não consegui parar de ficar organizando mentalmente tudo o que precisaria acontecer e pensando em que ordem filmar. Às 6 da manhã eu já estava no saguão do hotel. Lá fora um vento katrínico nas copas das árvores e as rajadas de chuva contra as vidraças pareciam efeito especial mal feito, de tão exagerado. Para piorar estava muito frio. Ouço sempre histórias de diretores que maltratam equipe e atores para conseguir o que buscam, mas infelizmente não me encaixo nesta categoria. Fico com pena de todo mundo. Então resolvi mudar os planos da noite mal dormida, adiar a cena complicada e começar a filmar uma ceninha dentro de uma confeitaria na esperança de que o tempo melhorasse. Com um olho na cena, (que ficou bem fraquinha, aliás) e outro na janela, fui vendo o vento ceder um pouco. Paramos para o almoço e sabia que depois disso não daria mais para empurrar com a barriga a cena da chuva. Eu havia conversado com os assistentes de direção sobre o que deveria acontecer na rua, mas não participei de nenhum ensaio, então comemos rápido e fomos para o set percorrer todo o espaço. O Celso ia me dizendo o que aconteceria em cada lugar: “Dois caras aparecem naquele balcão, uma garota vem catar água com a panela aqui, três pessoas peladas vão cruzar o quadro por aqui, o Herchcovitch vai beber água nesta sarjeta, um grupo aqui, outro lá etc., etc., etc”. O plano pareceu muito bom, fizemos alguns ajustes teóricos, mas a dúvida persistia: “Será que isso tudo vai funcionar quando o assistente gritar ‘ação’”?

Enquanto o César posicionava as câmeras andei com o elenco por todo o percurso lembrando-os de que deveriam parecer felizes naquela chuva gelada, conversei com o Alexandre, treinador do cachorro, sobre o que o Barnie teria que fazer, pedi desculpas para todo mundo pelo frio que iriam passar e resolvi rodar três vezes em seguida, sem cortar. Assim todos passariam frio por uns seis minutos e poderiam ir se reaquecer depois. Melhor do que ficar se molhando e se aquecendo várias vezes a tarde toda. Aquecedores, cobertores ,chocolate quente e este tipo de conforto foi organizado pela produção para as pausas, mas mesmo assim era difícil. ( E para falar a verdade nunca vi o tal chocolate quente.)

“Roda e reza”, pedi ao Walter, assistente. E a coisa funcionou. Mágica.

Demos uma pausa para a galera se reaquecer e reposicionamos as câmeras. Fizemos mais três passadas seguidas e mais uma pausa para aquecimento. Tínhamos tempo e água para fazer ainda mais três passadas mas, ao subir a rua vi um cara sem camisa completamente azul, depois vi a Alice Braga, já meio roxa e tremendo. Toquei nela e parecia que estava morta de tão fria. Ninguém estava reclamando, mas achei melhor parar. Me arrependi depois. Deveria ter feito algumas ceninhas isoladas que estavam preparadas, mas quando isso me ocorreu todo mundo já havia se dispersado. Merda, pensei. Mas não importa. No final deu mais certo do que eu previa e a cena está en la lata. E está bonitaça, com dizem los hermanos. E esse foi o último dia de trabalho no Uruguai. Quando começou a soar um Axé Remix na festa achei que aí também já era demais. Como o Chivito já estava digerido e todo mundo estava feliz, aquela era minha deixa para me pirulitar. E fui.

Agora é no Brasil.

sexta-feira, 28 de setembro de 2007

Post 6: Sobre cocô, civilização e barbárie



– Este corredor não se parece com os corredores descritos no livro, paniquei.

Excrescências tomam conta do romance, a ponto de termos que virar as páginas devagar para evitar o ventinho fétido que as palavras exalam mas, por alguma razão, a podridão na literatura não perturba tanto quanto imagens de imundice. Pensando nisso, e para evitar fazer um filme em que a audiência tivesse que tirar os olhos da tela o tempo todo, resolvi ser bem menos generoso em termos de sujeira do que foi o Saramago. O departamento de arte bem que preparou um verdadeiro catálogo de fezes feitas com chocolate e outras misturas, desenvolveram um know how incrível para recriar diarréia, cocô de pessoas que comem fibras, de quem só come proteína. Um primor. Apesar de impressionado com o resultado, decidi ser econômico no uso da tecnologia desenvolvida. Nêgo vai ter que olhar nos cantinhos do quadro para ver a sujeirada. Eu estava feliz com isso, até que naquela tarde me bateu a referida dúvida:

– Falta cocô? Será que me acovardei e estou fazendo um filme limpinho? Será que a situação que deveria ser insustentável vai perder o peso por causa da minha calhordice asséptica?

A primeira providência para aplacar a dúvida foi pedir para a arte emporcalhar 20 metros de corredor. Aproveitei o tedioso tempo esperando as maquiadoras mandarem os atores para o set, armamos um grande trilho e rodamos a nojeira num longo movimento de câmera. Gente urinando, uma mulher pisando em cheio num montinho, esse tipo de coisa. Não sei onde vou usar esta imagem, mas se na montagem eu sentir que falta sujeira, sapeco um pedaço deste traveling. Isso talvez não melhore o filme, mas vai satisfazer milhares de fãs do livro que esperam ver o pacote completo. Tem gosto para tudo. Com esta medida paliativa o pânico cedeu um pouco e outra das 560 questões que ocupam minha cabeça ocupou o topo da lista de preocupações.

“Ensaio Sobre a Cegueira” permite tantas leituras que a toda hora me pego conferindo se este ou aquele viés da história estão contemplados no que tenho filmado. Cada vez que me asseguro de um ponto, outras quatro dúvidas aparecem. – “Tudo, não teremos”, dizia meu avô. Mas bem que tento.

Esse é um texto que gera muitas perguntas, mas nenhuma resposta, levanta questões sobre a evolução do homem, nos faz refletir criticamente mas não aponta direções. Cada um terá que descobrir o caminho por si só. É uma história pós-moderna. Creio que por ser assim tão aberto, este livro permite que cada um o leia projetando suas próprias questões e todas as leituras parecem fazer sentido. Não é à toa que tanta gente diz ser este o seu livro favorito. Quem me dera fazer um filme com 5% desta qualidade.

A primeira imagem que me veio ao ler o “Ensaio Sobre a Cegueira” foi a da nossa civilização como uma complexa estrutura, como aquelas que se formam ao acaso no jogo de pega-varetas. De repente, uma vareta é retirada (a visão) e a estrutura toda desaba. Me interessei por esta história porque ela expõe a fragilidade desta civilização que consideramos tão sólida. Em nossa sociedade, os limites do que achamos que é civilizado são rompidos cotidianamente, mas parece que não nos damos conta, a barbárie está instalada e não vemos ou não queremos ver. Para mim, era sobre isso o livro. A metáfora da cegueira branca ilustra nossa falta de visão. “Eu não acho que ficamos cegos”, diz um personagem. “Acho que somos cegos. Cegos que podem ver, mas não vêem”. Por quanto sofrimento precisamos passar para que consigamos abrir os olhos e ver? Essa foi a primeira questão que me coloquei ao fechar a última página.

Os personagens desta história não têm nomes e nem precisam uma vez que são todos indistintos, incapazes de enxergar uns aos outros. Foi pensando no percurso de cada um deles que percebi que o desmoronamento do qual o livro fala não é necessariamente da sociedade ou da civilização, mas de cada indivíduo. Ao perder a visão, os personagens fazem o percurso da desumanização, passam a se mover pelo instinto de sobrevivência e suas vidas se resumem a comer, transar, defecar. É só o restabelecimento das relações amorosas, do afeto, do reconhecimento do outro que lhes dá a estrutura para reconstruir suas vidas e se humanizarem novamente. Acho que estamos dando uma ênfase maior a estas relações entre os personagens do que o livro dá. Opção arriscada, mas estou tomando cuidado para não virar melodrama.

Um psicanalista freudiano poderá dizer que esta história é uma ilustração da luta entre os instintos de vida e de destruição presentes no homem. Uma feminista diria que é o livro mais pró-mulher que já foi escrito. Os homens são inúteis. Em todos os momentos decisivos da história são as mulheres que resolvem a parada. Em uma entrevista em Porto Alegre, Saramago confirmou esta idéia : “...no caso do Ensaio Sobre a Cegueira ainda é essa a minha esperança: A de que a mulher seja capaz de tomar um novo lugar no mundo e inventar um modo novo de ser”
Há quem faça uma leitura mais política, lêem aqui uma história sobre a criação de uma sociedade onde a única saída possível depende do abandono das aspirações individuais em favor do bem coletivo. (Saramago é um comunista convicto) É também um livro sobre os fantasmas que nossa mente cria para nos atormentar e nos prender, como a religião, por exemplo. (Saramago é também ateu). Fora essas e muitas outras leituras possíveis, ainda tento manter os vários dilemas morais que estão na obra. Qual será o melhor líder, o Médico, que deixa os habitantes da Camarata 1 passando fome por tentar agir sempre eticamente, ou o Rei da Camarata 3, que simplesmente pega toda a comida e depois cobra por ela em nome dos seus? É lícito invadir uma camarata/país de terceiros pelo bem de seu povo? O que é preciso para que pareça aceitável um estupro? Que papo é esse de honra ou dignidade? Quando a coisa aperta todos nós revelamos nosso lado Calheiros?

São muitas questões para um livro só, como se vê, e para piorar, a cada dia descubro uma nova porta de entrada para esta história tão aberta. Evitar que esta infinidade de aberturas não se transformem em furos é minha principal questão neste momento. Furos podem fazer água e colocar a pique este projeto.

(pausa para atender ao telefone)

Acabei de saber que está chovendo lá fora, mas vamos sair para filmar na rua de qualquer jeito, em 6 minutos. Como vou fazer para grudar essa cena que vou rodar aqui em Montevideo com o sol que devemos pegar em São Paulo na semana que vem é o que eu deveria estar me perguntando. Perto desta questão, concreta e objetiva, todas as outras que listei acima não passam de churumelas.

Atravessaremos as pontes quando lá chegarmos, diz sempre a Andréa, sócia e amiga.

Vou na fé.

quinta-feira, 20 de setembro de 2007

Post 5: Sobre Malucos e Oficinas.



Acabou a parte canadense do filme. Sentado aqui no saguão do aeroporto de Toronto, tomando conta das malas do Quico, penso na pré-montagem de quase uma hora a que assisti esta tarde com os produtores, antes de irmos fazer um ravióli de despedida na casa do Niv. (Ele cozinha como um chef). “Não está mal”, pensei. E sorri sozinho enquanto dava outro replay-mental na montagem.

Esta primeira etapa do filme foi mais difícil em termos de dramaturgia, mas mais fácil em termos de produção. Filmamos por seis semanas dentro da prisão em Guelf, apenas dois dias em Toronto. Sem deslocamentos de caminhões ou trailers, sem precisar controlar pedestres, fechar ruas ou escapar da chuva, o trabalho fica mais concentrado e é mais fácil pensar no filme.

Em Montevideo e São Paulo, nossas próximas etapas, teremos ruas bloqueadas com motoristas impacientes buzinando, o caminhão do gerador vai quebrar e chegar atrasado, cachorros vão latir e precisarão ser localizados e silenciados, o clima no Uruguai vai nos dar uma surra, nuvem quando precisamos de sol e sol quando quisermos nuvens. Por mais que se tente, um set ao ar livre é um convite a problemas e dispersão, mas mesmo assim estou louco para chegar lá. Chega de paredes nesse filme e quero ir logo, mesmo sabendo que teremos também um cachorro em cena, chuva artificial e muitos figurantes em todas as cenas. Sim. A temporada de imprevistos está aberta.

Falo em figurantes pois neste filme eles não são apenas gente que cruza o quadro imitando o movimento das ruas. Aqui estão todos cegos. Todo mundo tem que atuar e esse pequeno detalhe foi o motivo que quase me tirou deste filme quando pensei em dirigi-lo. Cada vez que imaginava uma cidade ocupada só por cegos a imagem que me vinha era a de uma população caminhando pelas ruas com os braços estendidos como num filme B, ou Z, de Zumbi. Socorro, pensava. Mas sei que cegos não andam assim, então a primeira providência foi chamar o Chris Duvenport, preparador de atores, e convidá-lo para me ajudar a evitar que este Ensaio Sobre a Cegueira virasse um remake da Volta dos Mortos Vivos.

De cara, o Chris aceitou o convite. Chamou sua assistente, colocou uma venda preta nos olhos e foi andar pelo Ibirapuera. Se animou com a sensação e resolveu correr, até encontrar uma árvore. A experiência é uma forma de aprendizado e ele aprendeu com a cabeçada ou com o galo que havia outro caminho para fazer este trabalho: começou então com um grupo bem pequeno de atores numa sala. Todos vendados, foram convidados a explorar o local por horas a fio. No começo andavam animados, usavam as mãos, encontravam os obstáculos que eram colocados no caminho, disputavam um biscoito. Mas depois veio o tédio, algumas sensações estranhas, depressão às vezes, paz para alguns. Essas oficinas foram evoluindo. Aos poucos, o Chris foi aumentando o número de participantes e passou a levá-los para espaços maiores ou para passeios ao ar livre.

Em maio, ele organizou uma destas oficinas para a equipe do filme. Aprendi muito sobre som nas horas em que fiquei cego e decidi que vamos ser muito experimentais em nossa mixagem. Percebi também como a percepção do espaço é fragmentada e precária quando se usa apenas as mãos para entendê-lo, então decidi simplesmente abolir a geografia neste filme. Quem tentar entender qual corredor leva a qual parte do asilo vai perder seu tempo. Rodamos cada cena como nos dava na telha, sem nos preocupar se o ator deveria sair pela direita ou pela esquerda, na esperança de dar ao espectador um pouco da desorientação que a experiência da oficina me trouxe. Reflexos o tempo todo, imagens abstratas, mal enquadradas, desfocadas ou superexpostas completarão a receita da desconstrução do espaço (ou da visão?) neste filme. Tomara que funcione, agora é tarde para recuar.

Observando algumas destas sessões, notei como as pessoas ficam leves quando estão com a venda, e muito mais rígidas ou pesadas quando tentam reproduzir o mesmo movimento com os olhos abertos. Esse era o grande desafio do Chris, ajudá-los a manter o mesmo tipo de movimentação sem a venda. Foram tantas as oficinas que em pouco tempo já sabíamos o que funcionava melhor ou mais rápido. Então o Celso Yamashita passou a organizar toda esta figuração na América do Sul enquanto o Chris foi para Toronto e passou a trabalhar com os figurantes de lá. Com ele, foi o Pedro Morelli – estudante de cinema da ECA - USP –, que vai acabar trazendo a nossa experiência na filmagem com os figurantes canadenses para o Brasil. No Canadá, o diretor não pode falar com figurantes, se falar o figurante é promovido a ator e tem seu salário quintuplicado, a produção me impedia de fazer isso, então deixei nas mãos da Bárbara e do Pedro esta função, e acabei não participando deste processo de perto. Nem sei o que eles falavam para a figuração, mas sei que funcionou. Vou continuar fazendo o mesmo aqui.

Como todos gostaram muito das oficinas, propus que fizéssemos o mesmo trabalho com o elenco principal. Na verdade, não tinha muita certeza se eles topariam ficar fazendo um monte de exercícios, são todos atores experientes e cada um ali já tem a própria maneira de se preparar. Mas decidi ir em frente. Todo mundo topou.

Para dar a todos os atores um choque de saída, pedi ao Chris que marcasse o primeiro encontro em nosso escritório, que vendássemos nossos 20 atores e caminhássemos uns 500 metros, até o lugar onde faríamos o trabalho. A única coisa que foi dito a eles foi: “boa tarde, coloquem as vendas e sigam o som do sino”. Parecíamos um bando de moleques brincando de cabra-cega pelas ruas e pelo estacionamento de trailers do “Hulk III”, e de “American Pie VII”.(Sim, vai ter o sétimo.) Aliás, quando estou rodando uma cena, às vezes me distancio mentalmente e começo a ver o set como um play-ground cheio de crianças de quatro anos.
- Agora você era o bandido e colocava o revólver no pescoço dele. Aí você se acovardava, ficava com medo e chorava.

Assim que os atores colocaram as vendas, ainda no corredor do escritório, e o sino foi tocado, todos se movimentaram numa direção, mas o Mark Rufallo foi na direção oposta. Não queríamos ajudar ninguém, então o máximo que fazíamos era tocar o sino novamente, mas ele se perdia cada vez mais. Isso não vai dar certo, pensei. Senti que o Mark já estava ficando angustiado neste primeiro minuto e a caminhada programada iria durar uma hora, no mínimo. Desistir? Meu lado Senador da república respondeu: Absolutamente não! Com muito esforço e algum sofrimento (meu), ele finalmente conseguiu chegar ao estacionamento. Daí as coisas melhoraram um pouco, ele achou um ombro amigo e não desgrudou mais. Ao ver a imagem, lembrei do quadro “A Parábola dos Cegos”, de Brueguel, e resolvi recriar a mesma imagem em Montevideo. Pensando nas palavras de Cristo segundo o evangelho de São Mateus: “Quando um cego guia outro cego, ambos cairão na mesma vala”. Vou rodar isso na semana que vem. Depois do exercício, o Mark contou que é surdo de um dos ouvidos, o que dificulta localizar um som no espaço, ainda mais num corredor cheio de vidros onde o som rebate como uma bolinha de ping-pong. Imagino que no meio do exercício ele e todos os outros pensavam:“-Where did I end up tieding my donkey?”

Depois deste primeiro choque ainda fizemos outros experimentos do gênero com o elenco e o fato é que eles aprenderam muito rapidamente a parecerem cegos sem ter que esticar os braços ou usar a bengala. Mais rápido que os figurantes. Ora, pois. Em cenas muito difíceis alguns atores estão usando lentes de contato que bloqueiam 100% a visão, deixando-os livres para se concentrar na intenção da cena sem se preocupar em parecer cego.

Aliás, isso já nem é mais preciso. Na semana passada, após ter feito uma cena com o Gael, ajudei o Mark a sair do set conduzindo-o pelo ombro, avisando onde havia obstáculos. Levei-o até um canto do corredor e ficamos ali em pé batendo papo. Quando me chamaram no set ele resolveu voltar para o trailer, ofereci chamar o Quico para ajudá-lo a voltar mas ele disse que iria tentar vencer os 150 metros de corredores labirínticos sozinho. Que ator esforçado, pensei. Saiu andando e tateando a parede, mas lá na frente subiu lépido as escadas. Só então percebi que ele estava sem as lentes de contato. Falou o tempo todo me fazendo de bobo, como se estivesse cego. Mesmo a 40 centímetros de seus olhos, não percebi a diferença. Quando fui comentar a tapeação, ele deu risada. Anda fazendo isso o tempo todo com todos e todo mundo cai. Aquela foi a minha vez e não deve ter sido a primeira.

Vejo estes atores tentando ser outras pessoas e me admira sempre como embarcam no sofrimento alheio sem freios, parecem mesmo gostar. Acho que parte do prazer de atuar está nessa possibilidade de ampliar os próprios limites, fugir de si próprio e viver uma experiência em nome de outro, como numa espécie de Second Life profissional. Pensando bem, não é nada mal, às vezes, você poder chorar, xingar, matar ,transar com sua mãe e furar os olhos depois, mas tudo impunemente. Tem sua graça.

Profissão de maluco.

quinta-feira, 13 de setembro de 2007

Post 4: Sobre Carisma

Mpho Lohalo e Douglas Silva (foto de Alexandre Hermel)


Às vezes fico olhando para estes atores carismáticos para entender de onde vem a atração que exercem, tentando descobrir o que eles têm que nós, reles normais, não temos. A Sandra Oh (de Sideways) tem isso de sobra. Na primeira vez que a encontrei ela já havia me causado forte impressão, lembro até da cor do seu vestido (e em geral não sei dizer nem a cor da roupa que eu mesmo estou vestindo). Era azul, claro. Fomos apresentados pelo roteirista e diretor Alexander Payne, na ocasião nem sabia que ela era atriz, estávamos em Cannes e achei que ela fosse uma esposa acompanhando o marido na estréia de seu filme (All About Smith). E a esposa me impressionou. De onde vem tamanha presença?

De qualquer maneira fiquei feliz quando ela mesma pediu para fazer alguma pontinha neste filme, qualquer que fosse. Ela é canadense, grande amiga do Don McKellar, nosso roteirista, e por isso insistiu numa participação afetiva. Criamos então umas poucas linhas para a Ministra da Saúde, justificando assim sua viagem de Los Angeles até Toronto para apenas um dia de filmagem. Depois de muita negociação ela conseguiu convencer os produtores da série Grey’s Anatomy a lhe dar esse dia livre.

Valeu. Com a mulher em quadro não sobra nada para ninguém. Um papel mínimo, que a princípio seria feito por um figurante, virou um papel de verdade. Esta foi a lição do dia: qualquer papel merece um grande ator (e qualquer grande ator consegue transformar um papel.) Ainda no quesito carisma, há também neste filme um outro ator, um garoto de uns vinte e poucos anos chamado Mpho Koaho que me impressionou de cara quando o vi nos testes de elenco. A princípio ele deveria ter apenas uma linha no filme como um vendedor numa farmácia que dá uma xavecada mal-sucedida na Alice Braga, mas o cara é tão interessante que aos poucos estou lhe dando espaço e seu personagem tem crescido.

Nas cenas onde há muita gente tenho sempre pedido para o Guilherme Ayrosa, nosso “sound guy”, deixá-lo microfonado para aproveitar os cacos que ele sempre manda a queima-roupa. O incentivo a fazer estes comentários meio engraçados e comecei a colocá-lo em ceninhas onde ele não estava previsto. Até pensei em incluí-lo no grupo principal de personagens que escapa do asilo e dar-lhe alguma ceninha extra em São Paulo. Acho que o José Saramago vai me perdoar por esta, ele só não pensou em ter este Ajudante de Farmácia neste grupo principal de personagens por não ter tido a oportunidade de conhecer o Mpho.

Em ambos os casos, da Sandra e do Mpho, o carisma salta aos olhos, não por eu ter uma visão diferenciada, mas por eles terem este “je ne sais quoi” em doses cavalares. E eu continuo me perguntando: onde está esse carisma? No olhar? Em alguma percepção que a gente capta com algum outro sentido alem dos cinco mais famosos? Sei lá. Sei que isso não se desenvolve. É como ser alto ou ter olhos escuros. Vem no pacote.

Ontem tive outra confirmação da existência real deste tal carisma. Na hora de começarmos a rodar com a Sandra percebemos que, por um erro de comunicação, a figurinista havia mandado para o set todo o elenco com as roupas de uma outra cena. Fomos obrigados a mandá-los de volta para o trailer-camarim e enquanto aguardávamos os figurinos certos, olhando para o monitor, comentei com o César Charlone, fotógrafo, como estava bonita a luz que esperava os atores. Ele veio então com um papo de que bonita não era a luz que ele havia criado, mas sim o espaço onde estávamos. Afirmou que fotógrafos não fazem muita coisa, apenas 20% do trabalho, e que quem faz uma boa fotografia na verdade é a cenografia, a direção de arte ou os próprios atores. Para ilustrar sua tese (da qual discordo, ainda mais no caso dele) completou que sempre que enquadra a Ronda, a stand in * da Julianne Moore, sente que tem alguma coisa faltando em seu trabalho, mas quando chega a Julianne e ocupa o mesmo lugar, na mesma posição, o quadro parece iluminar-se, a fotografia se completa e a imagem passa a parecer “cinema”. A tal da presença, do “je ne sais quoi”. Qual é a mágica destas pessoas?

*Os “stand ins” são as pessoas que depois do primeiro ensaio, enquanto os atores vão se maquiar, ocupam seus lugares para que o fotógrafo possa iluminar a cena e ensaiar o movimento da câmera.

terça-feira, 4 de setembro de 2007

Post 3: Sobre filmagem “al dente”


De cozinha, sei apenas o básico, para não passar vexame. Mas sei que para se preparar um bom linguini ao pesto, tudo tem que ser feito na hora. Assim são também as cenas emocionais, não se pode ensaiar muito antes de rodar para manter vivo o perfume do manjericão e a emoção “al dente”.

Antes destas cenas só fazemos um “blocking”, como chamam aqui no Canadá; passamos mecanicamente os movimentos dos atores para colocar todo mundo na posição certa: câmera, luzes, o azeite, a figuração, liquidificador, nozes, escorredor. Você sabe. Com tudo na pia, pede-se silêncio, roda-se o som, joga-se a massa na água fervendo e a cena tem que acontecer naqueles 8 ou 11 minutos, dependendo do tipo da massa. E esse é o primeiro problema: alguns atores chegam no ponto certo nas primeiras duas ou três tomadas, outros precisam de umas sete ou oito e há quem goste de rodar até 15, 16 vezes a cena. Filmar uma cena com atores com tempos diferentes de aquecimento é como ter que cozinhar um ravióli e um fusili na mesma panela para serem servidos ao mesmo tempo. Foi assim na quarta feira passada.

A Julianne Moore ficou arrasada ao saber que teria que filmar a cena em que ela vem pelo corredor aos prantos depois de presenciar o estupro de 12 mulheres e matar dois dos estupradores. Difícil acertar o tom sem ter passado por estas cenas antes. Mas não tinha jeito. Era isso ou ficarmos parados, pois como nem o Gael Bernal e nem o Danny Glover haviam chegado. Estávamos sem ter o que filmar, então fomos em frente.

O microfone de lapela da Julianne já estava ligado, pude ouvir pelo head-phone que, lá do outro lado do corredor, sozinha, ela se preparava respirando fortemente. Enquanto isso, preparávamos nosso lado: luz, câmera, figuração. Então ela começou a chorar e depois a chorar convulsivamente, até que um assistente entrou correndo onde estávamos e anunciou: “A Julie está pronta e pede para rodarmos já”. Nós não estávamos prontos mas, nesta hora não interessa se a mesa não está posta ou se o vinho não foi aberto. Tem que rodar. E rodamos.

Na primeira tomada, ela veio pelo corredor desesperada. Berrou seu texto sem pensar, deixando vir a emoção que viesse. Pegou a nós todos desprevenidos, ao Mark Rufallo principalmente. Sem querer, ele entrou na onda e respondeu num tom lá em cima também. A cena calou todo mundo no set de tão forte. Cortamos. Apesar de estar com o coração batendo forte, me esforcei para não me deixar ser arrastado pelo tsunami que havia passado, corri para onde estavam os atores e pedi uma outra tomada num tom bem mais baixo. Julie nem me respondeu. Concordou com um gesto de cabeça e um sorriso técnico e voltando para a primeira posição, disse apenas: “Vamos rodar já, por favor”. Emoção é coisa viva, fugaz. Uma hora está lá, sólida, pode até ser enrolada num garfo e mastigada mas, no instante seguinte, pode se evaporar. Julie tentava não se dispersar para manter sólida essa coisa ainda viva. Algumas reações de figurantes precisavam ser corrigidas, o Guilherme veio me dizer que a bateria do microfone dela havia arriado e tinha que ser substituída e eu queria conversar com o Mark, mas tive apenas tempo de lhe pedir que não pegasse carona no tom da Julianne; e vamos nessa assim mesmo. O som a gente resolve depois.

Sabia que se ficasse cozinhando essa cena por mais 5 minutos alguma coisa se perderia para sempre. Rodamos então a segunda tomada. Uma terceira e uma quarta. Tudo na apnéia, sem respirar entre uma e outra. Maquiadoras, operador de boom, assistentes, foquistas, todos desesperados para dar seus retoques após cada tomada, mas fui segurando o batalhão. Então alguma coisa cedeu.

A Julie (posso chamá-la assim? É como todos a chamam) havia aprendido como deveria fazer a cena e já não precisava ser carregada apenas pela emoção. Tirando um pouco o pé do acelerador, mas sem deixar a coisa esfriar, pedi que todos os figurantes se afastassem dos atores, era mais rápido do que ensinar-lhes reações melhores, expliquei para a Winnie, a continuista, que nessa cena a continuidade não era a prioridade, não vamos perder tempo com detalhe. Dei apenas um tempo para o Guilherme trocar a bateria do microfone enquanto o César colocava mais duas câmeras para rodarmos ao mesmo tempo e evitar termos que ficar repetindo a mesma coisa por uma hora.

Ainda consegui dar alguma atenção ao Mark, que não estava conseguindo pensar na cena tal tinha sido a correria imposta pela necessidade da Julie e rodamos então mais quatro tomadas tentando achar o ponto exato da cena. Com a pausa, a Julie perdeu um pouco a emoção, mas em compensação o Mark foi encontrando seu tom. Meia hora depois da primeira tomada tudo já estava mais técnico, mais preciso, ainda que já não tão vivo. Paramos então com a minha promessa aos atores que depois de montada a cena, se precisássemos, refilmaríamos. A Julie implorou para não ter que passar pela mesma coisa novamente. Vamos torcer, é o que pude dizer.

Ontem, na sala de montagem com o Daniel, vimos que o ideal seria usar a quarta tomada da Julie, ainda quente, mas menos descontrolada e a oitava do Mark. O Daniel vai ter que dar um truque, montando partes de falas rodadas em momentos diferentes e sem um dos microfones, talvez tenhamos que assumir alguma descontinuidade na figuração, mas isso faz parte. Fora isso, acho que a cena está linda. O que importa está lá.

(E quer saber? Se numa cena destas alguém ficar olhando para o fundo da sala para procurar erro de continuidade, merece encontrar. Um baita esforço deste para nêgo vir dizer que não gostou do filme porque o barbudinho atrás da Julianne desapareceu no segundo contraplano? Give me a break!).


segunda-feira, 27 de agosto de 2007

Post 2: Sobre Saramago, bacalhau e ansiedade


Farta Brutos. Que nome.

Cheguei às 22h30 e fiquei em uma mesa de canto comendo tremoço e aguardando o José Saramago e sua mulher, Pilar, que chegariam a qualquer momento, vindos de uma noite de autógrafos com Mário Soares.

O Farta Brutos é um dos restaurantes predileto de Saramago em Lisboa. O casal mora em Lanzaroti, uma ilha muito árida na Espanha, mas como estavam de passagem pela cidade justamente quando eu voltava de Pequim, resolvi fazer um pit-stop para encontrá-lo e ainda passar um dia na “Terrinha”, aonde nunca tinha estado. Para esse encontro vieram também o Don McKellar, roteirista, e o produtor, NivFishman, diretamente de Toronto.

O restaurante é um lugar muito pequeno, fica na Cidade Velha e tem umas sete ou oito mesas tocadas pelo casal de proprietários. Nas paredes, muitas fotos de gente conhecida e evidentemente muitas imagens do próprio Saramago. Ao chegar, ele cumprimentou os proprietários com a intimidade de alguém de casa. Tentou, mas não pediu os pratos: o dono do restaurante foi simplesmente mandando para a mesa o que achava que deveríamos experimentar. Não parava de chegar comida. Quando eu já estava satisfeito, fiquei sabendo que aquilo tudo era apenas a entrada. Então começaram a chegar os diferentes pratos de bacalhau. O nome do restaurante fez todo sentido.

Saramago é um homem alto e muito em forma para seus oitenta e poucos anos, certamente pelo seu hábito de sempre caminhar ao invés de usar carro. É uma figura um pouco intimidante, eu estava tenso, mas ele foi muito amável e até afetuoso. Havia relido o livro duas vezes antes de ir para Portugal e já estava começando a trabalhar com o Don numa nova versão do roteiro. Estava cheio de perguntas a fazer, mas senti que ele preferia não explicar muito as personagens ou as intenções do livro. Foi específico apenas com relação ao Cão das Lágrimas, “Tem que ser um cachorro bem grande”, disse. Tentei teorizar sobre o Garoto Estrábico, mas ele não se impressionou: “É só um menino”. Ponto.

Dizem que Saramago fala francês melhor do que muitos franceses, mas ele não fala nada em inglês. Então ficamos apenas nós dois conversando em português, enquanto os amigos canadenses tentavam acompanhar com a ajuda da tradutora de Saramago para o alemão, Ray Mertin, que nos acompanhou.

Entre um bacalhau com ovo mexido (à Brás?) e a outro com azeitonas e pimentão, conversamos sobre locações e alguns nomes para o elenco. Ele aprovou, por exemplo, a escolha de Danny Glover para interpretar o Velho da Venda Preta. Isso foi uma boa notícia, uma vez que este personagem será uma espécie de alter ego do próprio escritor, ao menos é como eu estou encarando.

Danny Glover, assim como Saramago, é um homem grande e cheio de vitalidade. A venda preta em um dos olhos da personagem e a catarata no outro tem alguma relação com os pesados óculos do autor e é algo carregado de sentidos. Por não enxergar muito bem talvez este personagem viva mais em contato com seu mundo interno e imune à superficialidade do mundo sensorial, o que lhe permite, mesmo quando vítima da cegueira branca, compreender melhor e refletir sobre o caos onde todos estão instalados.

Na epígrafe do livro Saramago diz: “Se pode olhar, veja. Se pode ver, repara". Olhar com a percepção mecânica da visão, ver como uma observação mais atenta do que nos aparece à vista, uma visão analítica, e finalmente reparar no sentido de se libertar da superficialidade da visão e se aprofundar no interior do que é o homem e assim conhecê-lo. Se isso faz algum sentido, este Velho da Venda Preta será um homem que repara, que tem subjetividade e vida interior.

Caso eu dê alguma colaboração significativa no roteiro, acho que será aumentar a importância desse personagem na trama. Será como colocar o próprio Saramago na tela (aliás, chamá-lo para atuar teria sido uma boa idéia e ele talvez aceitasse. O Gael Bernal, que vai fazer o Rei da Camarata 3, me disse que uma vez dirigiu o Saramago numa peça de 45 minutos em Guadalajara e que ele foi muito bem. Também, com tamanha presença não precisa de muito mais).

Apesar de feliz pelo encontro, aquela noite me deixou apreensivo. Por ter sempre recusado a vender os direitos de seus livros para adaptação (“cinema destrói a imaginação”) achei que ele não estivesse interessado no filme.

Para meu desespero, estava enganado. Ele está interessado sim, perguntou várias vezes quando ficaria pronto ou quando poderia assistir algo. Depois do nosso encontro, me mandou um e-mail dispondo-se a colaborar caso eu precisasse e dizendo-se totalmente confiante em relação ao nosso trabalho. Antes não estivesse tão confiante assim, o risco de uma grande decepção seria menor. Sei que nenhuma projeção desse filme será tão tensa quanto a que farei para apresentá-lo ao autor da história.

Já passei por isso antes quando mostrei o Jardineiro Fiel pela primeira vez ao John Le Carré. Na cabine estavam apenas ele, a mulher, seus dois filhos, o produtor e eu. Quando acabou a projeção, os cinco segundos de silêncio que se seguiram foram os mais longos da minha vida, até serem quebrados por alguma palavra positiva que nem ouvi direito qual foi, tal o barulho que fez o peso do mundo saindo dos meus ombros. Desta vez, por alguma razão, sinto que a tensão vai ser ainda pior. Terei que estar preparado.

Porque me coloco sempre nessas situações?

sexta-feira, 24 de agosto de 2007

Post 1: As Bruxas

Toronto - julho de 2007

Primeiro dia de filmagem. Não tivemos tempo para ensaios nas semanas anteriores como planejei, mas o início havia sido bom e estávamos entrando no embalo. Era a última cena a ser rodada no dia. Entre um take e outro corri até onde estavam os atores para pedir que se sentassem um pouco mais à direita na cama. Voltei rápido para minha cadeira em frente ao vídeo-assist para não cortar o clima, mas no caminho fui interceptado pela Ciça.

- São 4h15, preciso ir. Ainda tenho que deixar seu sapato para consertar em algum lugar do shopping em frente ao hotel e terminar de fazer a mala. Tem certeza que não quer que eu mande outro sapato pelo Daniel?

Depois de 15 dias juntos em Toronto, Ciça estava voltando ao Brasil para encontrar a Carolina, nossa filha, que chegaria em São Paulo no mesmo dia vinda da China. Beijei-a meio atrapalhado na frente de toda a equipe que aguardava o fim da despedida. Nos abraçamos por um tempo, cochichamos alguma coisa, e ela se foi. Senti uma certa sensação de abandono. Agora seriam sete semanas dentro de uma prisão em Guelph, esta cidadezinha a uma hora de Toronto, com praticamente nada para fazer a não ser o filme. Ao vê-la se afastar pelo corredor pensei pela centésima vez: “Para que fui aceitar dirigir este projeto?”

O Ensaio Sobre a Cegueira foi publicado no Brasil em 97 ou 98. Li o livro quase numa sentada e por uma semana aquelas imagens e a idéia de que tudo está por um triz me fizeram companhia. Naquele ano, minha vida andava estável demais, então pensei que filmar tal história seria o antídoto perfeito contra a incômoda sensação de segurança que eu sentia.

Num impulso, sem ter a mínima idéia de como adaptaria aquele romance, liguei para o Luis Schwarcz, o editor brasileiro do José Saramago, e pedi que ele consultasse o autor sobre seu interesse em vender os direitos para uma adaptação cinematográfica. A resposta veio rápida: nenhum interesse. Absorvi o tranco, comprei os direitos de Cidade de Deus do mesmo editor e esqueci o assunto.

Sobre as bruxas: como 2005 havia sido um dos piores anos da minha vida, decidi fazer de 2006 o meu período sabático: não assumiria nenhum compromisso. E foi assim por cinco meses. Em junho recebi um e-mail de um produtor canadense, que eu não conhecia, me perguntando se eu já havia lido José Saramago e se teria interesse em uma adaptação de um dos seus romances. Para ser simpático respondi: manda. Três dias depois, chegou em um envelope com um roteiro em inglês. Era Blindness, o Ensaio Sobre a Cegueira.

Devem existir milhares de diretores no mundo. O que fez com que aquele texto viesse cair justamente em minhas mãos? Essas coincidências são assustadoras. Talvez mais impressionado pela magia da coincidência do que motivado pela possibilidade de mergulhar naquele universo tão negro, dei um sinal verde: disse ao produtor Niv Fichman que havia gostado da adaptação, o que bastou para que mais três dias depois ele e o roteirista Don McKellar estivessem almoçando comigo em São Paulo.

Nunca fui um bom surfista, mas ondas do entusiasmo sempre me levam de arrasto, e eles estavam muito animados. Não consegui evitar. Dois meses e meio após esse encontro, lá estava eu no Festival de Toronto anunciando oficialmente o projeto.

Voltando à conversa em São Paulo. Ao sentir que o vento estava favorável, coloquei como condição para meu envolvimento que o filme fosse uma co-produção Brasil-Canadá e que ao menos metade dele fosse rodado em São Paulo. O Niv não só topou no ato como se entusiasmou com a possibilidade de filmarmos uma parte no Brasil. Sugeriu a participação de uma produtora japonesa, Sonoko Sakai, que poderia trazer 60% do financiamento, o que nos garantiria total independência de estúdios americanos e propôs ainda que convidássemos a Potboiller, a produtora inglesa do Jardineiro Fiel, para fazer toda a parte de contratos e negociações. Com a Andrea Barata Ribeiro e a Bel Berlinck, sócias da O2, como as produtoras do Brasil, fechamos o time.

Quando um jornalista me perguntou, durante o Festival de Toronto, como seria o filme, me dei conta de que não tinha nada muito sólido para responder. Menti que não contaria para não estragar a surpresa. Gosto muito do livro. Há um ano, isso seria tudo de concreto que eu teria a dizer. Não que esse fato me preocupa-se, sabia que com a ajuda dos parceiros descobriríamos o filme durante o processo de fazê-lo.

E o melhor: os parceiros seriam os de sempre, quase a mesma genial equipe que fez Cidade de Deus. César Charlone na fotografia, Daniel Rezende na montagem, Tule Peak na direção de arte, Gui Ayrosa no som direto com Alessandro La Roca na finalização e Ana Van Steen na maquiagem. A estes se somariam alguns canadenses que eu ainda não conhecia na época. Com essa turma me apoiando na criação, mas sem saber muito como seria o filme, embarquei na viagem. A experiência me ensinou a deixar antes o vento bater para então decidir o rumo a seguir. Esta é uma das vantagens da maturidade, aprende-se a confiar na intuição.

Em outubro de 2006 resolvi adiar a comédia que pensava em rodar antes e atacar esta Cegueira que já estava mais palpável. Marcamos as filmagens para início de julho de 2007 e saímos correndo para colocar o projeto em pé. O ano sabático durou apenas um semestre e eu me vi novamente no meio de um furacão.

Parece uma sina.