Toronto - julho de 2007
Primeiro dia de filmagem. Não tivemos tempo para ensaios nas semanas anteriores como planejei, mas o início havia sido bom e estávamos entrando no embalo. Era a última cena a ser rodada no dia. Entre um take e outro corri até onde estavam os atores para pedir que se sentassem um pouco mais à direita na cama. Voltei rápido para minha cadeira em frente ao vídeo-assist para não cortar o clima, mas no caminho fui interceptado pela Ciça.
- São 4h15, preciso ir. Ainda tenho que deixar seu sapato para consertar em algum lugar do shopping em frente ao hotel e terminar de fazer a mala. Tem certeza que não quer que eu mande outro sapato pelo Daniel?
Depois de 15 dias juntos em Toronto, Ciça estava voltando ao Brasil para encontrar a Carolina, nossa filha, que chegaria em São Paulo no mesmo dia vinda da China. Beijei-a meio atrapalhado na frente de toda a equipe que aguardava o fim da despedida. Nos abraçamos por um tempo, cochichamos alguma coisa, e ela se foi. Senti uma certa sensação de abandono. Agora seriam sete semanas dentro de uma prisão em Guelph, esta cidadezinha a uma hora de Toronto, com praticamente nada para fazer a não ser o filme. Ao vê-la se afastar pelo corredor pensei pela centésima vez: “Para que fui aceitar dirigir este projeto?”
O Ensaio Sobre a Cegueira foi publicado no Brasil em 97 ou 98. Li o livro quase numa sentada e por uma semana aquelas imagens e a idéia de que tudo está por um triz me fizeram companhia. Naquele ano, minha vida andava estável demais, então pensei que filmar tal história seria o antídoto perfeito contra a incômoda sensação de segurança que eu sentia.
Num impulso, sem ter a mínima idéia de como adaptaria aquele romance, liguei para o Luis Schwarcz, o editor brasileiro do José Saramago, e pedi que ele consultasse o autor sobre seu interesse em vender os direitos para uma adaptação cinematográfica. A resposta veio rápida: nenhum interesse. Absorvi o tranco, comprei os direitos de Cidade de Deus do mesmo editor e esqueci o assunto.
Sobre as bruxas: como 2005 havia sido um dos piores anos da minha vida, decidi fazer de 2006 o meu período sabático: não assumiria nenhum compromisso. E foi assim por cinco meses. Em junho recebi um e-mail de um produtor canadense, que eu não conhecia, me perguntando se eu já havia lido José Saramago e se teria interesse em uma adaptação de um dos seus romances. Para ser simpático respondi: manda. Três dias depois, chegou em um envelope com um roteiro em inglês. Era Blindness, o Ensaio Sobre a Cegueira.
Devem existir milhares de diretores no mundo. O que fez com que aquele texto viesse cair justamente em minhas mãos? Essas coincidências são assustadoras. Talvez mais impressionado pela magia da coincidência do que motivado pela possibilidade de mergulhar naquele universo tão negro, dei um sinal verde: disse ao produtor Niv Fichman que havia gostado da adaptação, o que bastou para que mais três dias depois ele e o roteirista Don McKellar estivessem almoçando comigo em São Paulo.
Nunca fui um bom surfista, mas ondas do entusiasmo sempre me levam de arrasto, e eles estavam muito animados. Não consegui evitar. Dois meses e meio após esse encontro, lá estava eu no Festival de Toronto anunciando oficialmente o projeto.
Voltando à conversa em São Paulo. Ao sentir que o vento estava favorável, coloquei como condição para meu envolvimento que o filme fosse uma co-produção Brasil-Canadá e que ao menos metade dele fosse rodado em São Paulo. O Niv não só topou no ato como se entusiasmou com a possibilidade de filmarmos uma parte no Brasil. Sugeriu a participação de uma produtora japonesa, Sonoko Sakai, que poderia trazer 60% do financiamento, o que nos garantiria total independência de estúdios americanos e propôs ainda que convidássemos a Potboiller, a produtora inglesa do Jardineiro Fiel, para fazer toda a parte de contratos e negociações. Com a Andrea Barata Ribeiro e a Bel Berlinck, sócias da O2, como as produtoras do Brasil, fechamos o time.
Quando um jornalista me perguntou, durante o Festival de Toronto, como seria o filme, me dei conta de que não tinha nada muito sólido para responder. Menti que não contaria para não estragar a surpresa. Gosto muito do livro. Há um ano, isso seria tudo de concreto que eu teria a dizer. Não que esse fato me preocupa-se, sabia que com a ajuda dos parceiros descobriríamos o filme durante o processo de fazê-lo.
E o melhor: os parceiros seriam os de sempre, quase a mesma genial equipe que fez Cidade de Deus. César Charlone na fotografia, Daniel Rezende na montagem, Tule Peak na direção de arte, Gui Ayrosa no som direto com Alessandro La Roca na finalização e Ana Van Steen na maquiagem. A estes se somariam alguns canadenses que eu ainda não conhecia na época. Com essa turma me apoiando na criação, mas sem saber muito como seria o filme, embarquei na viagem. A experiência me ensinou a deixar antes o vento bater para então decidir o rumo a seguir. Esta é uma das vantagens da maturidade, aprende-se a confiar na intuição.
Em outubro de 2006 resolvi adiar a comédia que pensava em rodar antes e atacar esta Cegueira que já estava mais palpável. Marcamos as filmagens para início de julho de 2007 e saímos correndo para colocar o projeto em pé. O ano sabático durou apenas um semestre e eu me vi novamente no meio de um furacão.
Parece uma sina.
Primeiro dia de filmagem. Não tivemos tempo para ensaios nas semanas anteriores como planejei, mas o início havia sido bom e estávamos entrando no embalo. Era a última cena a ser rodada no dia. Entre um take e outro corri até onde estavam os atores para pedir que se sentassem um pouco mais à direita na cama. Voltei rápido para minha cadeira em frente ao vídeo-assist para não cortar o clima, mas no caminho fui interceptado pela Ciça.
- São 4h15, preciso ir. Ainda tenho que deixar seu sapato para consertar em algum lugar do shopping em frente ao hotel e terminar de fazer a mala. Tem certeza que não quer que eu mande outro sapato pelo Daniel?
Depois de 15 dias juntos em Toronto, Ciça estava voltando ao Brasil para encontrar a Carolina, nossa filha, que chegaria em São Paulo no mesmo dia vinda da China. Beijei-a meio atrapalhado na frente de toda a equipe que aguardava o fim da despedida. Nos abraçamos por um tempo, cochichamos alguma coisa, e ela se foi. Senti uma certa sensação de abandono. Agora seriam sete semanas dentro de uma prisão em Guelph, esta cidadezinha a uma hora de Toronto, com praticamente nada para fazer a não ser o filme. Ao vê-la se afastar pelo corredor pensei pela centésima vez: “Para que fui aceitar dirigir este projeto?”
O Ensaio Sobre a Cegueira foi publicado no Brasil em 97 ou 98. Li o livro quase numa sentada e por uma semana aquelas imagens e a idéia de que tudo está por um triz me fizeram companhia. Naquele ano, minha vida andava estável demais, então pensei que filmar tal história seria o antídoto perfeito contra a incômoda sensação de segurança que eu sentia.
Num impulso, sem ter a mínima idéia de como adaptaria aquele romance, liguei para o Luis Schwarcz, o editor brasileiro do José Saramago, e pedi que ele consultasse o autor sobre seu interesse em vender os direitos para uma adaptação cinematográfica. A resposta veio rápida: nenhum interesse. Absorvi o tranco, comprei os direitos de Cidade de Deus do mesmo editor e esqueci o assunto.
Sobre as bruxas: como 2005 havia sido um dos piores anos da minha vida, decidi fazer de 2006 o meu período sabático: não assumiria nenhum compromisso. E foi assim por cinco meses. Em junho recebi um e-mail de um produtor canadense, que eu não conhecia, me perguntando se eu já havia lido José Saramago e se teria interesse em uma adaptação de um dos seus romances. Para ser simpático respondi: manda. Três dias depois, chegou em um envelope com um roteiro em inglês. Era Blindness, o Ensaio Sobre a Cegueira.
Devem existir milhares de diretores no mundo. O que fez com que aquele texto viesse cair justamente em minhas mãos? Essas coincidências são assustadoras. Talvez mais impressionado pela magia da coincidência do que motivado pela possibilidade de mergulhar naquele universo tão negro, dei um sinal verde: disse ao produtor Niv Fichman que havia gostado da adaptação, o que bastou para que mais três dias depois ele e o roteirista Don McKellar estivessem almoçando comigo em São Paulo.
Nunca fui um bom surfista, mas ondas do entusiasmo sempre me levam de arrasto, e eles estavam muito animados. Não consegui evitar. Dois meses e meio após esse encontro, lá estava eu no Festival de Toronto anunciando oficialmente o projeto.
Voltando à conversa em São Paulo. Ao sentir que o vento estava favorável, coloquei como condição para meu envolvimento que o filme fosse uma co-produção Brasil-Canadá e que ao menos metade dele fosse rodado em São Paulo. O Niv não só topou no ato como se entusiasmou com a possibilidade de filmarmos uma parte no Brasil. Sugeriu a participação de uma produtora japonesa, Sonoko Sakai, que poderia trazer 60% do financiamento, o que nos garantiria total independência de estúdios americanos e propôs ainda que convidássemos a Potboiller, a produtora inglesa do Jardineiro Fiel, para fazer toda a parte de contratos e negociações. Com a Andrea Barata Ribeiro e a Bel Berlinck, sócias da O2, como as produtoras do Brasil, fechamos o time.
Quando um jornalista me perguntou, durante o Festival de Toronto, como seria o filme, me dei conta de que não tinha nada muito sólido para responder. Menti que não contaria para não estragar a surpresa. Gosto muito do livro. Há um ano, isso seria tudo de concreto que eu teria a dizer. Não que esse fato me preocupa-se, sabia que com a ajuda dos parceiros descobriríamos o filme durante o processo de fazê-lo.
E o melhor: os parceiros seriam os de sempre, quase a mesma genial equipe que fez Cidade de Deus. César Charlone na fotografia, Daniel Rezende na montagem, Tule Peak na direção de arte, Gui Ayrosa no som direto com Alessandro La Roca na finalização e Ana Van Steen na maquiagem. A estes se somariam alguns canadenses que eu ainda não conhecia na época. Com essa turma me apoiando na criação, mas sem saber muito como seria o filme, embarquei na viagem. A experiência me ensinou a deixar antes o vento bater para então decidir o rumo a seguir. Esta é uma das vantagens da maturidade, aprende-se a confiar na intuição.
Em outubro de 2006 resolvi adiar a comédia que pensava em rodar antes e atacar esta Cegueira que já estava mais palpável. Marcamos as filmagens para início de julho de 2007 e saímos correndo para colocar o projeto em pé. O ano sabático durou apenas um semestre e eu me vi novamente no meio de um furacão.
Parece uma sina.
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