sexta-feira, 28 de setembro de 2007

Post 6: Sobre cocô, civilização e barbárie



– Este corredor não se parece com os corredores descritos no livro, paniquei.

Excrescências tomam conta do romance, a ponto de termos que virar as páginas devagar para evitar o ventinho fétido que as palavras exalam mas, por alguma razão, a podridão na literatura não perturba tanto quanto imagens de imundice. Pensando nisso, e para evitar fazer um filme em que a audiência tivesse que tirar os olhos da tela o tempo todo, resolvi ser bem menos generoso em termos de sujeira do que foi o Saramago. O departamento de arte bem que preparou um verdadeiro catálogo de fezes feitas com chocolate e outras misturas, desenvolveram um know how incrível para recriar diarréia, cocô de pessoas que comem fibras, de quem só come proteína. Um primor. Apesar de impressionado com o resultado, decidi ser econômico no uso da tecnologia desenvolvida. Nêgo vai ter que olhar nos cantinhos do quadro para ver a sujeirada. Eu estava feliz com isso, até que naquela tarde me bateu a referida dúvida:

– Falta cocô? Será que me acovardei e estou fazendo um filme limpinho? Será que a situação que deveria ser insustentável vai perder o peso por causa da minha calhordice asséptica?

A primeira providência para aplacar a dúvida foi pedir para a arte emporcalhar 20 metros de corredor. Aproveitei o tedioso tempo esperando as maquiadoras mandarem os atores para o set, armamos um grande trilho e rodamos a nojeira num longo movimento de câmera. Gente urinando, uma mulher pisando em cheio num montinho, esse tipo de coisa. Não sei onde vou usar esta imagem, mas se na montagem eu sentir que falta sujeira, sapeco um pedaço deste traveling. Isso talvez não melhore o filme, mas vai satisfazer milhares de fãs do livro que esperam ver o pacote completo. Tem gosto para tudo. Com esta medida paliativa o pânico cedeu um pouco e outra das 560 questões que ocupam minha cabeça ocupou o topo da lista de preocupações.

“Ensaio Sobre a Cegueira” permite tantas leituras que a toda hora me pego conferindo se este ou aquele viés da história estão contemplados no que tenho filmado. Cada vez que me asseguro de um ponto, outras quatro dúvidas aparecem. – “Tudo, não teremos”, dizia meu avô. Mas bem que tento.

Esse é um texto que gera muitas perguntas, mas nenhuma resposta, levanta questões sobre a evolução do homem, nos faz refletir criticamente mas não aponta direções. Cada um terá que descobrir o caminho por si só. É uma história pós-moderna. Creio que por ser assim tão aberto, este livro permite que cada um o leia projetando suas próprias questões e todas as leituras parecem fazer sentido. Não é à toa que tanta gente diz ser este o seu livro favorito. Quem me dera fazer um filme com 5% desta qualidade.

A primeira imagem que me veio ao ler o “Ensaio Sobre a Cegueira” foi a da nossa civilização como uma complexa estrutura, como aquelas que se formam ao acaso no jogo de pega-varetas. De repente, uma vareta é retirada (a visão) e a estrutura toda desaba. Me interessei por esta história porque ela expõe a fragilidade desta civilização que consideramos tão sólida. Em nossa sociedade, os limites do que achamos que é civilizado são rompidos cotidianamente, mas parece que não nos damos conta, a barbárie está instalada e não vemos ou não queremos ver. Para mim, era sobre isso o livro. A metáfora da cegueira branca ilustra nossa falta de visão. “Eu não acho que ficamos cegos”, diz um personagem. “Acho que somos cegos. Cegos que podem ver, mas não vêem”. Por quanto sofrimento precisamos passar para que consigamos abrir os olhos e ver? Essa foi a primeira questão que me coloquei ao fechar a última página.

Os personagens desta história não têm nomes e nem precisam uma vez que são todos indistintos, incapazes de enxergar uns aos outros. Foi pensando no percurso de cada um deles que percebi que o desmoronamento do qual o livro fala não é necessariamente da sociedade ou da civilização, mas de cada indivíduo. Ao perder a visão, os personagens fazem o percurso da desumanização, passam a se mover pelo instinto de sobrevivência e suas vidas se resumem a comer, transar, defecar. É só o restabelecimento das relações amorosas, do afeto, do reconhecimento do outro que lhes dá a estrutura para reconstruir suas vidas e se humanizarem novamente. Acho que estamos dando uma ênfase maior a estas relações entre os personagens do que o livro dá. Opção arriscada, mas estou tomando cuidado para não virar melodrama.

Um psicanalista freudiano poderá dizer que esta história é uma ilustração da luta entre os instintos de vida e de destruição presentes no homem. Uma feminista diria que é o livro mais pró-mulher que já foi escrito. Os homens são inúteis. Em todos os momentos decisivos da história são as mulheres que resolvem a parada. Em uma entrevista em Porto Alegre, Saramago confirmou esta idéia : “...no caso do Ensaio Sobre a Cegueira ainda é essa a minha esperança: A de que a mulher seja capaz de tomar um novo lugar no mundo e inventar um modo novo de ser”
Há quem faça uma leitura mais política, lêem aqui uma história sobre a criação de uma sociedade onde a única saída possível depende do abandono das aspirações individuais em favor do bem coletivo. (Saramago é um comunista convicto) É também um livro sobre os fantasmas que nossa mente cria para nos atormentar e nos prender, como a religião, por exemplo. (Saramago é também ateu). Fora essas e muitas outras leituras possíveis, ainda tento manter os vários dilemas morais que estão na obra. Qual será o melhor líder, o Médico, que deixa os habitantes da Camarata 1 passando fome por tentar agir sempre eticamente, ou o Rei da Camarata 3, que simplesmente pega toda a comida e depois cobra por ela em nome dos seus? É lícito invadir uma camarata/país de terceiros pelo bem de seu povo? O que é preciso para que pareça aceitável um estupro? Que papo é esse de honra ou dignidade? Quando a coisa aperta todos nós revelamos nosso lado Calheiros?

São muitas questões para um livro só, como se vê, e para piorar, a cada dia descubro uma nova porta de entrada para esta história tão aberta. Evitar que esta infinidade de aberturas não se transformem em furos é minha principal questão neste momento. Furos podem fazer água e colocar a pique este projeto.

(pausa para atender ao telefone)

Acabei de saber que está chovendo lá fora, mas vamos sair para filmar na rua de qualquer jeito, em 6 minutos. Como vou fazer para grudar essa cena que vou rodar aqui em Montevideo com o sol que devemos pegar em São Paulo na semana que vem é o que eu deveria estar me perguntando. Perto desta questão, concreta e objetiva, todas as outras que listei acima não passam de churumelas.

Atravessaremos as pontes quando lá chegarmos, diz sempre a Andréa, sócia e amiga.

Vou na fé.

quinta-feira, 20 de setembro de 2007

Post 5: Sobre Malucos e Oficinas.



Acabou a parte canadense do filme. Sentado aqui no saguão do aeroporto de Toronto, tomando conta das malas do Quico, penso na pré-montagem de quase uma hora a que assisti esta tarde com os produtores, antes de irmos fazer um ravióli de despedida na casa do Niv. (Ele cozinha como um chef). “Não está mal”, pensei. E sorri sozinho enquanto dava outro replay-mental na montagem.

Esta primeira etapa do filme foi mais difícil em termos de dramaturgia, mas mais fácil em termos de produção. Filmamos por seis semanas dentro da prisão em Guelf, apenas dois dias em Toronto. Sem deslocamentos de caminhões ou trailers, sem precisar controlar pedestres, fechar ruas ou escapar da chuva, o trabalho fica mais concentrado e é mais fácil pensar no filme.

Em Montevideo e São Paulo, nossas próximas etapas, teremos ruas bloqueadas com motoristas impacientes buzinando, o caminhão do gerador vai quebrar e chegar atrasado, cachorros vão latir e precisarão ser localizados e silenciados, o clima no Uruguai vai nos dar uma surra, nuvem quando precisamos de sol e sol quando quisermos nuvens. Por mais que se tente, um set ao ar livre é um convite a problemas e dispersão, mas mesmo assim estou louco para chegar lá. Chega de paredes nesse filme e quero ir logo, mesmo sabendo que teremos também um cachorro em cena, chuva artificial e muitos figurantes em todas as cenas. Sim. A temporada de imprevistos está aberta.

Falo em figurantes pois neste filme eles não são apenas gente que cruza o quadro imitando o movimento das ruas. Aqui estão todos cegos. Todo mundo tem que atuar e esse pequeno detalhe foi o motivo que quase me tirou deste filme quando pensei em dirigi-lo. Cada vez que imaginava uma cidade ocupada só por cegos a imagem que me vinha era a de uma população caminhando pelas ruas com os braços estendidos como num filme B, ou Z, de Zumbi. Socorro, pensava. Mas sei que cegos não andam assim, então a primeira providência foi chamar o Chris Duvenport, preparador de atores, e convidá-lo para me ajudar a evitar que este Ensaio Sobre a Cegueira virasse um remake da Volta dos Mortos Vivos.

De cara, o Chris aceitou o convite. Chamou sua assistente, colocou uma venda preta nos olhos e foi andar pelo Ibirapuera. Se animou com a sensação e resolveu correr, até encontrar uma árvore. A experiência é uma forma de aprendizado e ele aprendeu com a cabeçada ou com o galo que havia outro caminho para fazer este trabalho: começou então com um grupo bem pequeno de atores numa sala. Todos vendados, foram convidados a explorar o local por horas a fio. No começo andavam animados, usavam as mãos, encontravam os obstáculos que eram colocados no caminho, disputavam um biscoito. Mas depois veio o tédio, algumas sensações estranhas, depressão às vezes, paz para alguns. Essas oficinas foram evoluindo. Aos poucos, o Chris foi aumentando o número de participantes e passou a levá-los para espaços maiores ou para passeios ao ar livre.

Em maio, ele organizou uma destas oficinas para a equipe do filme. Aprendi muito sobre som nas horas em que fiquei cego e decidi que vamos ser muito experimentais em nossa mixagem. Percebi também como a percepção do espaço é fragmentada e precária quando se usa apenas as mãos para entendê-lo, então decidi simplesmente abolir a geografia neste filme. Quem tentar entender qual corredor leva a qual parte do asilo vai perder seu tempo. Rodamos cada cena como nos dava na telha, sem nos preocupar se o ator deveria sair pela direita ou pela esquerda, na esperança de dar ao espectador um pouco da desorientação que a experiência da oficina me trouxe. Reflexos o tempo todo, imagens abstratas, mal enquadradas, desfocadas ou superexpostas completarão a receita da desconstrução do espaço (ou da visão?) neste filme. Tomara que funcione, agora é tarde para recuar.

Observando algumas destas sessões, notei como as pessoas ficam leves quando estão com a venda, e muito mais rígidas ou pesadas quando tentam reproduzir o mesmo movimento com os olhos abertos. Esse era o grande desafio do Chris, ajudá-los a manter o mesmo tipo de movimentação sem a venda. Foram tantas as oficinas que em pouco tempo já sabíamos o que funcionava melhor ou mais rápido. Então o Celso Yamashita passou a organizar toda esta figuração na América do Sul enquanto o Chris foi para Toronto e passou a trabalhar com os figurantes de lá. Com ele, foi o Pedro Morelli – estudante de cinema da ECA - USP –, que vai acabar trazendo a nossa experiência na filmagem com os figurantes canadenses para o Brasil. No Canadá, o diretor não pode falar com figurantes, se falar o figurante é promovido a ator e tem seu salário quintuplicado, a produção me impedia de fazer isso, então deixei nas mãos da Bárbara e do Pedro esta função, e acabei não participando deste processo de perto. Nem sei o que eles falavam para a figuração, mas sei que funcionou. Vou continuar fazendo o mesmo aqui.

Como todos gostaram muito das oficinas, propus que fizéssemos o mesmo trabalho com o elenco principal. Na verdade, não tinha muita certeza se eles topariam ficar fazendo um monte de exercícios, são todos atores experientes e cada um ali já tem a própria maneira de se preparar. Mas decidi ir em frente. Todo mundo topou.

Para dar a todos os atores um choque de saída, pedi ao Chris que marcasse o primeiro encontro em nosso escritório, que vendássemos nossos 20 atores e caminhássemos uns 500 metros, até o lugar onde faríamos o trabalho. A única coisa que foi dito a eles foi: “boa tarde, coloquem as vendas e sigam o som do sino”. Parecíamos um bando de moleques brincando de cabra-cega pelas ruas e pelo estacionamento de trailers do “Hulk III”, e de “American Pie VII”.(Sim, vai ter o sétimo.) Aliás, quando estou rodando uma cena, às vezes me distancio mentalmente e começo a ver o set como um play-ground cheio de crianças de quatro anos.
- Agora você era o bandido e colocava o revólver no pescoço dele. Aí você se acovardava, ficava com medo e chorava.

Assim que os atores colocaram as vendas, ainda no corredor do escritório, e o sino foi tocado, todos se movimentaram numa direção, mas o Mark Rufallo foi na direção oposta. Não queríamos ajudar ninguém, então o máximo que fazíamos era tocar o sino novamente, mas ele se perdia cada vez mais. Isso não vai dar certo, pensei. Senti que o Mark já estava ficando angustiado neste primeiro minuto e a caminhada programada iria durar uma hora, no mínimo. Desistir? Meu lado Senador da república respondeu: Absolutamente não! Com muito esforço e algum sofrimento (meu), ele finalmente conseguiu chegar ao estacionamento. Daí as coisas melhoraram um pouco, ele achou um ombro amigo e não desgrudou mais. Ao ver a imagem, lembrei do quadro “A Parábola dos Cegos”, de Brueguel, e resolvi recriar a mesma imagem em Montevideo. Pensando nas palavras de Cristo segundo o evangelho de São Mateus: “Quando um cego guia outro cego, ambos cairão na mesma vala”. Vou rodar isso na semana que vem. Depois do exercício, o Mark contou que é surdo de um dos ouvidos, o que dificulta localizar um som no espaço, ainda mais num corredor cheio de vidros onde o som rebate como uma bolinha de ping-pong. Imagino que no meio do exercício ele e todos os outros pensavam:“-Where did I end up tieding my donkey?”

Depois deste primeiro choque ainda fizemos outros experimentos do gênero com o elenco e o fato é que eles aprenderam muito rapidamente a parecerem cegos sem ter que esticar os braços ou usar a bengala. Mais rápido que os figurantes. Ora, pois. Em cenas muito difíceis alguns atores estão usando lentes de contato que bloqueiam 100% a visão, deixando-os livres para se concentrar na intenção da cena sem se preocupar em parecer cego.

Aliás, isso já nem é mais preciso. Na semana passada, após ter feito uma cena com o Gael, ajudei o Mark a sair do set conduzindo-o pelo ombro, avisando onde havia obstáculos. Levei-o até um canto do corredor e ficamos ali em pé batendo papo. Quando me chamaram no set ele resolveu voltar para o trailer, ofereci chamar o Quico para ajudá-lo a voltar mas ele disse que iria tentar vencer os 150 metros de corredores labirínticos sozinho. Que ator esforçado, pensei. Saiu andando e tateando a parede, mas lá na frente subiu lépido as escadas. Só então percebi que ele estava sem as lentes de contato. Falou o tempo todo me fazendo de bobo, como se estivesse cego. Mesmo a 40 centímetros de seus olhos, não percebi a diferença. Quando fui comentar a tapeação, ele deu risada. Anda fazendo isso o tempo todo com todos e todo mundo cai. Aquela foi a minha vez e não deve ter sido a primeira.

Vejo estes atores tentando ser outras pessoas e me admira sempre como embarcam no sofrimento alheio sem freios, parecem mesmo gostar. Acho que parte do prazer de atuar está nessa possibilidade de ampliar os próprios limites, fugir de si próprio e viver uma experiência em nome de outro, como numa espécie de Second Life profissional. Pensando bem, não é nada mal, às vezes, você poder chorar, xingar, matar ,transar com sua mãe e furar os olhos depois, mas tudo impunemente. Tem sua graça.

Profissão de maluco.

quinta-feira, 13 de setembro de 2007

Post 4: Sobre Carisma

Mpho Lohalo e Douglas Silva (foto de Alexandre Hermel)


Às vezes fico olhando para estes atores carismáticos para entender de onde vem a atração que exercem, tentando descobrir o que eles têm que nós, reles normais, não temos. A Sandra Oh (de Sideways) tem isso de sobra. Na primeira vez que a encontrei ela já havia me causado forte impressão, lembro até da cor do seu vestido (e em geral não sei dizer nem a cor da roupa que eu mesmo estou vestindo). Era azul, claro. Fomos apresentados pelo roteirista e diretor Alexander Payne, na ocasião nem sabia que ela era atriz, estávamos em Cannes e achei que ela fosse uma esposa acompanhando o marido na estréia de seu filme (All About Smith). E a esposa me impressionou. De onde vem tamanha presença?

De qualquer maneira fiquei feliz quando ela mesma pediu para fazer alguma pontinha neste filme, qualquer que fosse. Ela é canadense, grande amiga do Don McKellar, nosso roteirista, e por isso insistiu numa participação afetiva. Criamos então umas poucas linhas para a Ministra da Saúde, justificando assim sua viagem de Los Angeles até Toronto para apenas um dia de filmagem. Depois de muita negociação ela conseguiu convencer os produtores da série Grey’s Anatomy a lhe dar esse dia livre.

Valeu. Com a mulher em quadro não sobra nada para ninguém. Um papel mínimo, que a princípio seria feito por um figurante, virou um papel de verdade. Esta foi a lição do dia: qualquer papel merece um grande ator (e qualquer grande ator consegue transformar um papel.) Ainda no quesito carisma, há também neste filme um outro ator, um garoto de uns vinte e poucos anos chamado Mpho Koaho que me impressionou de cara quando o vi nos testes de elenco. A princípio ele deveria ter apenas uma linha no filme como um vendedor numa farmácia que dá uma xavecada mal-sucedida na Alice Braga, mas o cara é tão interessante que aos poucos estou lhe dando espaço e seu personagem tem crescido.

Nas cenas onde há muita gente tenho sempre pedido para o Guilherme Ayrosa, nosso “sound guy”, deixá-lo microfonado para aproveitar os cacos que ele sempre manda a queima-roupa. O incentivo a fazer estes comentários meio engraçados e comecei a colocá-lo em ceninhas onde ele não estava previsto. Até pensei em incluí-lo no grupo principal de personagens que escapa do asilo e dar-lhe alguma ceninha extra em São Paulo. Acho que o José Saramago vai me perdoar por esta, ele só não pensou em ter este Ajudante de Farmácia neste grupo principal de personagens por não ter tido a oportunidade de conhecer o Mpho.

Em ambos os casos, da Sandra e do Mpho, o carisma salta aos olhos, não por eu ter uma visão diferenciada, mas por eles terem este “je ne sais quoi” em doses cavalares. E eu continuo me perguntando: onde está esse carisma? No olhar? Em alguma percepção que a gente capta com algum outro sentido alem dos cinco mais famosos? Sei lá. Sei que isso não se desenvolve. É como ser alto ou ter olhos escuros. Vem no pacote.

Ontem tive outra confirmação da existência real deste tal carisma. Na hora de começarmos a rodar com a Sandra percebemos que, por um erro de comunicação, a figurinista havia mandado para o set todo o elenco com as roupas de uma outra cena. Fomos obrigados a mandá-los de volta para o trailer-camarim e enquanto aguardávamos os figurinos certos, olhando para o monitor, comentei com o César Charlone, fotógrafo, como estava bonita a luz que esperava os atores. Ele veio então com um papo de que bonita não era a luz que ele havia criado, mas sim o espaço onde estávamos. Afirmou que fotógrafos não fazem muita coisa, apenas 20% do trabalho, e que quem faz uma boa fotografia na verdade é a cenografia, a direção de arte ou os próprios atores. Para ilustrar sua tese (da qual discordo, ainda mais no caso dele) completou que sempre que enquadra a Ronda, a stand in * da Julianne Moore, sente que tem alguma coisa faltando em seu trabalho, mas quando chega a Julianne e ocupa o mesmo lugar, na mesma posição, o quadro parece iluminar-se, a fotografia se completa e a imagem passa a parecer “cinema”. A tal da presença, do “je ne sais quoi”. Qual é a mágica destas pessoas?

*Os “stand ins” são as pessoas que depois do primeiro ensaio, enquanto os atores vão se maquiar, ocupam seus lugares para que o fotógrafo possa iluminar a cena e ensaiar o movimento da câmera.

terça-feira, 4 de setembro de 2007

Post 3: Sobre filmagem “al dente”


De cozinha, sei apenas o básico, para não passar vexame. Mas sei que para se preparar um bom linguini ao pesto, tudo tem que ser feito na hora. Assim são também as cenas emocionais, não se pode ensaiar muito antes de rodar para manter vivo o perfume do manjericão e a emoção “al dente”.

Antes destas cenas só fazemos um “blocking”, como chamam aqui no Canadá; passamos mecanicamente os movimentos dos atores para colocar todo mundo na posição certa: câmera, luzes, o azeite, a figuração, liquidificador, nozes, escorredor. Você sabe. Com tudo na pia, pede-se silêncio, roda-se o som, joga-se a massa na água fervendo e a cena tem que acontecer naqueles 8 ou 11 minutos, dependendo do tipo da massa. E esse é o primeiro problema: alguns atores chegam no ponto certo nas primeiras duas ou três tomadas, outros precisam de umas sete ou oito e há quem goste de rodar até 15, 16 vezes a cena. Filmar uma cena com atores com tempos diferentes de aquecimento é como ter que cozinhar um ravióli e um fusili na mesma panela para serem servidos ao mesmo tempo. Foi assim na quarta feira passada.

A Julianne Moore ficou arrasada ao saber que teria que filmar a cena em que ela vem pelo corredor aos prantos depois de presenciar o estupro de 12 mulheres e matar dois dos estupradores. Difícil acertar o tom sem ter passado por estas cenas antes. Mas não tinha jeito. Era isso ou ficarmos parados, pois como nem o Gael Bernal e nem o Danny Glover haviam chegado. Estávamos sem ter o que filmar, então fomos em frente.

O microfone de lapela da Julianne já estava ligado, pude ouvir pelo head-phone que, lá do outro lado do corredor, sozinha, ela se preparava respirando fortemente. Enquanto isso, preparávamos nosso lado: luz, câmera, figuração. Então ela começou a chorar e depois a chorar convulsivamente, até que um assistente entrou correndo onde estávamos e anunciou: “A Julie está pronta e pede para rodarmos já”. Nós não estávamos prontos mas, nesta hora não interessa se a mesa não está posta ou se o vinho não foi aberto. Tem que rodar. E rodamos.

Na primeira tomada, ela veio pelo corredor desesperada. Berrou seu texto sem pensar, deixando vir a emoção que viesse. Pegou a nós todos desprevenidos, ao Mark Rufallo principalmente. Sem querer, ele entrou na onda e respondeu num tom lá em cima também. A cena calou todo mundo no set de tão forte. Cortamos. Apesar de estar com o coração batendo forte, me esforcei para não me deixar ser arrastado pelo tsunami que havia passado, corri para onde estavam os atores e pedi uma outra tomada num tom bem mais baixo. Julie nem me respondeu. Concordou com um gesto de cabeça e um sorriso técnico e voltando para a primeira posição, disse apenas: “Vamos rodar já, por favor”. Emoção é coisa viva, fugaz. Uma hora está lá, sólida, pode até ser enrolada num garfo e mastigada mas, no instante seguinte, pode se evaporar. Julie tentava não se dispersar para manter sólida essa coisa ainda viva. Algumas reações de figurantes precisavam ser corrigidas, o Guilherme veio me dizer que a bateria do microfone dela havia arriado e tinha que ser substituída e eu queria conversar com o Mark, mas tive apenas tempo de lhe pedir que não pegasse carona no tom da Julianne; e vamos nessa assim mesmo. O som a gente resolve depois.

Sabia que se ficasse cozinhando essa cena por mais 5 minutos alguma coisa se perderia para sempre. Rodamos então a segunda tomada. Uma terceira e uma quarta. Tudo na apnéia, sem respirar entre uma e outra. Maquiadoras, operador de boom, assistentes, foquistas, todos desesperados para dar seus retoques após cada tomada, mas fui segurando o batalhão. Então alguma coisa cedeu.

A Julie (posso chamá-la assim? É como todos a chamam) havia aprendido como deveria fazer a cena e já não precisava ser carregada apenas pela emoção. Tirando um pouco o pé do acelerador, mas sem deixar a coisa esfriar, pedi que todos os figurantes se afastassem dos atores, era mais rápido do que ensinar-lhes reações melhores, expliquei para a Winnie, a continuista, que nessa cena a continuidade não era a prioridade, não vamos perder tempo com detalhe. Dei apenas um tempo para o Guilherme trocar a bateria do microfone enquanto o César colocava mais duas câmeras para rodarmos ao mesmo tempo e evitar termos que ficar repetindo a mesma coisa por uma hora.

Ainda consegui dar alguma atenção ao Mark, que não estava conseguindo pensar na cena tal tinha sido a correria imposta pela necessidade da Julie e rodamos então mais quatro tomadas tentando achar o ponto exato da cena. Com a pausa, a Julie perdeu um pouco a emoção, mas em compensação o Mark foi encontrando seu tom. Meia hora depois da primeira tomada tudo já estava mais técnico, mais preciso, ainda que já não tão vivo. Paramos então com a minha promessa aos atores que depois de montada a cena, se precisássemos, refilmaríamos. A Julie implorou para não ter que passar pela mesma coisa novamente. Vamos torcer, é o que pude dizer.

Ontem, na sala de montagem com o Daniel, vimos que o ideal seria usar a quarta tomada da Julie, ainda quente, mas menos descontrolada e a oitava do Mark. O Daniel vai ter que dar um truque, montando partes de falas rodadas em momentos diferentes e sem um dos microfones, talvez tenhamos que assumir alguma descontinuidade na figuração, mas isso faz parte. Fora isso, acho que a cena está linda. O que importa está lá.

(E quer saber? Se numa cena destas alguém ficar olhando para o fundo da sala para procurar erro de continuidade, merece encontrar. Um baita esforço deste para nêgo vir dizer que não gostou do filme porque o barbudinho atrás da Julianne desapareceu no segundo contraplano? Give me a break!).