quarta-feira, 21 de novembro de 2007

Post 13: Sobre Montagem, Juntões e Frame-Fucking



Apagamos a luz para fingir que estávamos numa sala de cinema e tiramos o telefone do gancho, um saiu para beber água outro para ir ao banheiro. Assistir ao filme montado pela primeira vez é uma experiência tensa. Mesmo conhecendo cada linha do texto, o tom em que cada frase foi falada, os enquadramentos, mesmo depois de já ter decorado como estão montadas cada seqüência ou saber em que instante a música de referência vai entrar. Mesmo assim, eu estava ansioso. Aparentemente tudo parecia estar correto, mas o problema é que neste trabalho 5 + 5 pode ser igual a três e essa era a hora de conferir a soma. Mas o que tem que ser feito, tem que ser feito. “Dá logo play nessa bagaça”, pedi. Quando o filme acabou eu não estava deprimido, sentia apenas um leve mal-estar. “Talvez seja bom sinal”, pensei. “Acho que vai dar para salvar”.

O Daniel Rezende começou essa montagem em julho, em Toronto, mas isso a que assistimos ainda não era nem um primeiro corte, era apenas um “juntão”, como ele chama. Um “juntão” são todas as cenas “armadas” e enfileiradas na ordem do roteiro. Mesmo quando não gostamos de alguma coisa que foi filmada, ela vai para o bolo. (Só mesmo as cenas que ficaram vergonhosamente ruins é que são cortadas de cara. Certas coisas devem ser esquecidas). Claro que sempre há espaço para se tentar algumas transições interessantes ou fazer algumas experimentações mais arriscadas e gosto de ser surpreendido, mas, a princípio, a idéia do juntão está mais para lição de casa.

Deu duas horas e quarenta minutos. Muito longo. Como não pretendo ficar gastando o precioso tempo do espectador, minha idéia é deixar este filme com umas duas horas no máximo, então a próxima missão era jogar 40 minutos no lixo e tentar achar uma história com bom ritmo no que sobrar. Este é um momento do processo que gosto, é concentrado, há espaço para criação, não há prazos malucos e nem pressão externa. É quando os problemas de roteiro ou interpretação são percebidos e contornados, onde um personagem pode ser modificado ou um canastrão pode virar um ator razoável. (Aliás se você pensa em seguir a carreira de ator eis o melhor conselho que posso dar: Suborne sempre o montador. Leve chocolate, flores se for uma montadora, até um vinho mais caro se seu trabalho estiver realmente fraco). Há um milhão de maneiras de melhorar uma atuação na montagem. Nos momentos mais vergonhosos pode-se cortar para a cara do outro ator evitando o vexame, uma fala mal falada pode ser regravada e usada com a imagem do ator de costas e daí para frente. É muito fácil tapear o espectador (sinto muito) e confesso que tenho um certo prazer quando consigo fazer isso sem deixar marcas da trapaça. Mas neste caso, conforme o previsto, não precisaremos usar estes truques sujos, nosso elenco é muito consistente. O trabalho maior desta montagem será achar o tom certo para cada personagem. Coloca-se um olhar a mais, uma pausa a menos, põe-se aqui, corrige-se ali, é como temperar um ensopado. Neste processo tentamos deixar o médico mais arrogante no início, sua mulher mais bobinha, a Garota de Óculos Escuros mais fria, e assim por diante e então, durante o filme, todos vão se transformando, criando o chamado “arco do personagem”. No final das contas, 98% dos filmes são sobre isso, sobre transformação de personagens.

Secar o juntão é mole, rapidamente tudo que está sobrando vai caindo. Menos gordura e mais músculos. Quem não gosta? Em cinco dias, chegamos ao primeiro corte que baixou para duas horas e vinte e cinco minutos. Tirar 15 minutos de cara foi um bom começo, mas ainda faltava tirar mais uns 15. É neste ponto que a coisa vai ficando mais complicada. Tem um momento em que as cenas já chegaram no tamanho certo, mas o filme ainda está longo. Se cortar mais as cenas, o filme fica frenético, sem clima, mas se não diminuir a duração total, o filme fica arrastado. Filme lento é bom mas filme arrastado é imperdoável e não há nada pior do que ouvir na saída do cinema o camarada dizer: “O filme é bom mas poderia ter 15 minutos a menos”. “Vá lá tentar cortar então, sabichão!”, dá vontade de responder. Mas como este não é um problema do espectador, a solução foi pegar estas duas horas e vinte e cinco que tínhamos no primeiro corte e partir para a terceira rodada da montagem em direção ao segundo corte.

Nesta nova passada, como tudo que estava visivelmente sobrando já havia caído, os cortes são praticamente invisíveis. Vão embora as pausas nas falas dos atores. (Alguns atores tendem a alongar as suas pausas ou para ganhar mais tempo de tela ou, às vezes, por terem esquecido suas falas. Cortando de uma câmera para a outra esse, tempo morto some.) Uma caminhada pelo corredor é abreviada, uma chave que gira na porta é substituída apenas pelo som, cortam-se dois passos do ator em direção ao carro, falas de início de cena são sobrepostas na cena anterior, textos que não sejam realmente importantes são eliminados e, usando um grande repertório de truques como estes, o filme vai ganhando ritmo. Nesta terceira passada, chegamos a duas horas e dezessete minutos, melhor, mas pelo menos mais uns 10 minutos devem sair só que já não há mais de onde tirar gordura então esta é a hora de pensar quais cenas podem ser despachadas direto para o DVD, em geral cenas que são boas mas que manteriam a história em pé se fossem cortadas. É neste ponto que estou hoje. Cortando cenas boas.

Fora o ritmo, muitas vezes algumas cenas simplesmente não chegaram onde deveriam ter chegado, ou pela direção óbvia (que muita gente chama de clássica), ou pela atuação, ou porque alguma fala que deveria estar lá não foi escrita. Nesta hora entra a operação salvação de cena. Com o Daniel, aprendi que quando um problema parece insolúvel mas a cena não pode ser cortada do filme, ao invés de ficar adicionando planos ou gravando novas falas para tentar deixa-la mais clara ou mais eficiente a melhor solução é seca-la ao máximo, passar o mais rápido possível por ela na esperança de que o espectador não perceba o problema. Aprendi também que ficar pondo e tirando fotogramas aqui e ali, (frame-fucking, como chamam os americanos) nunca vai resolver o problema de uma cena mal resolvida anteriormente. Há também uma infinidade de truques de montagem para deixar ao menos digno o que foi mal feito na filmagem, mas às vezes uma cena parece mesmo condenada ao fracasso e pode comprometer o filme todo, essa é sempre uma constatação dolorosa quando acontece. E sempre acontece. Por sorte, neste filme estamos livres deste mal, aqui podemos sempre contar com um último recurso que funciona como uma espécie de colete-salva-vidas. Infalível:

Tudo na cena está ruim? Corta para um close da Julianne Moore. Aí é xeque-mate.


PS: Fui assistir a “A Casa de Alice”. Filmaço. Direção muito sensível. Um ator melhor do que o outro. (Aviso: não sou amigo do diretor e nem dos atores, é só um toque porque o filme é bom mesmo.)

segunda-feira, 12 de novembro de 2007

Post 12: Sobre filmar em SP, Síntese e Culpa



Escrevi este texto faz um tempo, depois reli, achei meio desinteressante e fui deixando de lado. Ontem, na festa de casamento de uma prima, me perguntaram se eu iria interromper esse diário assim sem aviso, como o final de um filme do Kiesloswsky. Depois deste comentário, mesmo achando o texto meio desinteressante, resolvi prosseguir nesta empreitada. Aí vai:

Quando os personagens desta história saem do asilo, não há mais carros ou aviões ou qualquer tipo de motor ligado na cidade, então precisávamos de um lugar silencioso para filmar em São Paulo. Encontramos na Granja Vianna a casa do Márcio Amaral, coincidentemente meu amigo e vizinho. Irresponsavelmente, ele topou se mudar com a família para um hotel por um mês e deixou que invadíssemos sua casa, que tirássemos todos os móveis, destruíssemos seu jardim e ainda deixássemos o Juca, seu labrador, deprimido. Não temos cerca separando nossos terrenos, então literalmente, eu acordava, atravessava o jardim e estava no set. Um filme deste tamanho ficou parecido com filme de estudante, filmado praticamente no quintal. A grande vantagem de ter feito assim não foram só os minutos a mais de sono todos os dias, mas a privacidade. É mais constrangedor para alguém tocar a campainha de uma casa e pedir para entrar para dar uma olhadinha, então o set foi sossegado.

Rodar no meio da cidade, porém, foi mais movimentado. Ao chegarmos nas locações, sempre havia gente nos esperando, eu não entendia como as pessoas adivinhavam onde estaríamos rodando, até um dos curiosos me explicar que havia um grupo no Orkut que divulgava nosso plano de filmagem regularmente. Aliás, não entendo muito o interesse das pessoas em assistir a filmagens. Filmagem é a coisa mais chata se você não está trabalhando. Talvez mais chato do que assistir a um dentista obturando. (Eu nunca liguei para minha dentista para pedir para ir vê-la fazer uma obturação). Mas não atrapalhou, pois a platéia sempre colaborava, o problema é que tínhamos a idéia de não mostrar imagens do filme antes dele ser lançado, nem mesmo no trailler, mas, com esse vazamento de informação, alguns jornais mandaram fotógrafos e tivemos que desistir desta estratégia. O Estado de SP nos pediu permissão e publicou uma reprodução que fizemos de um quadro do Brueguel. É uma bela foto, mas me arrependi de ter liberado. Mas agora que já foi feito, o melhor é escancarar de vez. Eis aí a foto do nosso set pelo Estadão e abaixo o Brueguel:






A idéia de reproduzir quadros num filme não é original mas, nesta história sobre visão, trazer referências do imaginário humano ao longo do tempo pareceu fazer algum sentido. Fora este Brueguel, quem conhece um pouco de pintura vai identificar referências a Hieronymus Bosch, Rembrandt, Malevitch, alguns dadaístas, cubistas, Francis Bacon, gravuras japonesas, e principalmente algumas telas do Lucien Freud que nem referências são, são cópias mesmo. Homenagem. O que me espantou ao reproduzir estes quadros foi constatar que apesar do nosso empenho em buscar imagens expressivas no filme, cada vez que estas referências aparecem na tela elas saltam. Isso talvez explique porque estes artistas resistiriam ao tempo. Em seus trabalhos, conseguiram alguma espécie de síntese que mesmo nessas cópias, fora do seu tempo, ainda continuam expressivas.

Buscar imagens/síntese que expressem o filme como um todo é uma espécie de distúrbio que tenho. Sempre que penso em algum filme, me vem associada uma imagem como se fosse um registro emocional das duas horas de projeção. Às vezes são imagens espetaculares. Por exemplo: Penso em “Fitzcarraldo”, do Herzog e me vem a imagem daquele barco preso por cordas puxadas por centenas de índios sendo arrastado morro acima, não por acaso a imagem do pôster. Mas às vezes são imagens bem mais simples, como a expressão da Liv Ulman olhando a Ingrid Bergman tocar Sonata ao Luar em “Sonata de Outono” ou a mãe do Bambi correndo na neve antes de ser baleada pelos caçadores. Sempre que ouço a expressão “cinema brasileiro” me vem um plano de “Vidas Secas”, aquela família andando contra a claridade do chão árido. Ao fazer um filme, fico tentando criar ou encontrar uma imagem que tenha este poder de síntese. Lembro que em “CDD” havia me proposto a nunca filmar garotos apontando a arma em direção à câmera, um enquadramento clichê de filmes policiais, mas lá pelo meio da filmagem comecei a perceber que não tínhamos uma imagem forte ainda e apelei. Acabei rodando uma cena onde o Douglas Silva, Dadinho, apontava seu trinta-e-oito para a câmera. Intencionalmente, coloquei-o na frente de uma bananeira e pedi para ele dar risada enquanto atirasse. Foi uma atitude mais marqueteira do que artística, confesso. Imaginei que essa poderia ser uma imagem surpreendente do Brasil, o clima tropical, a alegria do moleque negro, não por causa de um samba ou de um gol, mas pela posse de uma arma. Dois anos depois, vi no metrô de Paris, em enormes pôsters, o Douglas apontando seu trinta-e-oitão para a francesada nas plataformas. Mesmo sendo uma imagem contrária ao que eu queria falar com o filme, onde a violência não deveria ser espetacularizada, os distribuidores franceses viram ali uma espécie de síntese e escolheram aquela imagem para representar o filme.

Descobrir qual é a imagem/síntese de um filme me parece tão importante quanto conseguir formular um “story-line” (resumir o filme em apenas uma frase). Em “Blindness” eu não sei exatamente qual será esta imagem/síntese, mas sempre imaginei um filme opressivamente luminoso. Em nossas 12 semanas de filmagens, conseguimos bons momentos de brancura e agora torço para que no meio das 45 horas de material rodado ou dos 3.888.000 fotogramas expostos, haja ao menos um que consiga traduzir esta história. Se não houver paciência, pois as filmagens já acabaram. E acabaram com festas e jantares. Como sempre.

A Ciça, minha mulher, e eu chegamos meia hora antes do jantar de despedida, que foi oferecido pelo Hotel Emiliano, e fomos direto para o quarto da Julianne. O Mark Rufallo foi até seu quarto pegar uma garrafa de vinho branco, nos espalhamos no sofá e coloquei o DVD com algumas cenas do filme já montadas. Não chamamos mais ninguém para assistir, só nós quatro. É duro este tipo de apresentação, é como fazer uma strip-tease, muita exposição, me sinto constrangido.

A Julianne parece que gostou da meia hora a que assistiu e só achou que estava meio exagerada numa cena em que ela chora. Fiquei de rever o material. O Mark, como era de se esperar, elogiou o que viu, elogiou a Julianne, mas ficou arrasado com sua própria performance. Típico. “Eu disse que você deveria ter chamado o Sean Penn”, falou. De fato algumas vezes, depois de acabarmos uma cena ele dizia: “Acho que o Sean Penn ainda está disponível, não me ofendo se você quiser me substituir”. Uma daquelas piadas que não são totalmente piada. Já vi muita gente culpada na vida, mas o Mark bate todos os recordes. É pior do que eu.

Ontem, o Gael (que deu um olé na imprensa brasileira dizendo que tinha voltado para o México, mas ficou tirando umas férias no Brasil) passou na sala de montagem para ver um pouco do filme e depois de elogiar as performances dos colegas me perguntou se algum ator já havia assistido a alguma coisa. Disse que só o Mark e a Julianne haviam visto algumas cenas. “E o Mark achou que estava péssimo, certo?”, perguntou. Risadas. O pior (ou melhor) é que ele está bem para burro, começa o filme como um médico meio arrogante, muito seguro de si mas, depois que perde a visão, começa a se enxergar. E desmonta. Ele parece uma pessoa de verdade, e não o típico protagonista machão de cinema americano, mas vá tentar convencê-lo disso. Talvez a solução para o seu caso seja aumentar o número de sessões de análise ou trocar de analista. Vou sugerir.

E agora pretendo ficar bestando por uns 15 dias, até o início de Novembro, quando começo a acompanhar a montagem em tempo integral.

Coitado do Daniel.