segunda-feira, 27 de agosto de 2007
Post 2: Sobre Saramago, bacalhau e ansiedade
Farta Brutos. Que nome.
Cheguei às 22h30 e fiquei em uma mesa de canto comendo tremoço e aguardando o José Saramago e sua mulher, Pilar, que chegariam a qualquer momento, vindos de uma noite de autógrafos com Mário Soares.
O Farta Brutos é um dos restaurantes predileto de Saramago em Lisboa. O casal mora em Lanzaroti, uma ilha muito árida na Espanha, mas como estavam de passagem pela cidade justamente quando eu voltava de Pequim, resolvi fazer um pit-stop para encontrá-lo e ainda passar um dia na “Terrinha”, aonde nunca tinha estado. Para esse encontro vieram também o Don McKellar, roteirista, e o produtor, NivFishman, diretamente de Toronto.
O restaurante é um lugar muito pequeno, fica na Cidade Velha e tem umas sete ou oito mesas tocadas pelo casal de proprietários. Nas paredes, muitas fotos de gente conhecida e evidentemente muitas imagens do próprio Saramago. Ao chegar, ele cumprimentou os proprietários com a intimidade de alguém de casa. Tentou, mas não pediu os pratos: o dono do restaurante foi simplesmente mandando para a mesa o que achava que deveríamos experimentar. Não parava de chegar comida. Quando eu já estava satisfeito, fiquei sabendo que aquilo tudo era apenas a entrada. Então começaram a chegar os diferentes pratos de bacalhau. O nome do restaurante fez todo sentido.
Saramago é um homem alto e muito em forma para seus oitenta e poucos anos, certamente pelo seu hábito de sempre caminhar ao invés de usar carro. É uma figura um pouco intimidante, eu estava tenso, mas ele foi muito amável e até afetuoso. Havia relido o livro duas vezes antes de ir para Portugal e já estava começando a trabalhar com o Don numa nova versão do roteiro. Estava cheio de perguntas a fazer, mas senti que ele preferia não explicar muito as personagens ou as intenções do livro. Foi específico apenas com relação ao Cão das Lágrimas, “Tem que ser um cachorro bem grande”, disse. Tentei teorizar sobre o Garoto Estrábico, mas ele não se impressionou: “É só um menino”. Ponto.
Dizem que Saramago fala francês melhor do que muitos franceses, mas ele não fala nada em inglês. Então ficamos apenas nós dois conversando em português, enquanto os amigos canadenses tentavam acompanhar com a ajuda da tradutora de Saramago para o alemão, Ray Mertin, que nos acompanhou.
Entre um bacalhau com ovo mexido (à Brás?) e a outro com azeitonas e pimentão, conversamos sobre locações e alguns nomes para o elenco. Ele aprovou, por exemplo, a escolha de Danny Glover para interpretar o Velho da Venda Preta. Isso foi uma boa notícia, uma vez que este personagem será uma espécie de alter ego do próprio escritor, ao menos é como eu estou encarando.
Danny Glover, assim como Saramago, é um homem grande e cheio de vitalidade. A venda preta em um dos olhos da personagem e a catarata no outro tem alguma relação com os pesados óculos do autor e é algo carregado de sentidos. Por não enxergar muito bem talvez este personagem viva mais em contato com seu mundo interno e imune à superficialidade do mundo sensorial, o que lhe permite, mesmo quando vítima da cegueira branca, compreender melhor e refletir sobre o caos onde todos estão instalados.
Na epígrafe do livro Saramago diz: “Se pode olhar, veja. Se pode ver, repara". Olhar com a percepção mecânica da visão, ver como uma observação mais atenta do que nos aparece à vista, uma visão analítica, e finalmente reparar no sentido de se libertar da superficialidade da visão e se aprofundar no interior do que é o homem e assim conhecê-lo. Se isso faz algum sentido, este Velho da Venda Preta será um homem que repara, que tem subjetividade e vida interior.
Caso eu dê alguma colaboração significativa no roteiro, acho que será aumentar a importância desse personagem na trama. Será como colocar o próprio Saramago na tela (aliás, chamá-lo para atuar teria sido uma boa idéia e ele talvez aceitasse. O Gael Bernal, que vai fazer o Rei da Camarata 3, me disse que uma vez dirigiu o Saramago numa peça de 45 minutos em Guadalajara e que ele foi muito bem. Também, com tamanha presença não precisa de muito mais).
Apesar de feliz pelo encontro, aquela noite me deixou apreensivo. Por ter sempre recusado a vender os direitos de seus livros para adaptação (“cinema destrói a imaginação”) achei que ele não estivesse interessado no filme.
Para meu desespero, estava enganado. Ele está interessado sim, perguntou várias vezes quando ficaria pronto ou quando poderia assistir algo. Depois do nosso encontro, me mandou um e-mail dispondo-se a colaborar caso eu precisasse e dizendo-se totalmente confiante em relação ao nosso trabalho. Antes não estivesse tão confiante assim, o risco de uma grande decepção seria menor. Sei que nenhuma projeção desse filme será tão tensa quanto a que farei para apresentá-lo ao autor da história.
Já passei por isso antes quando mostrei o Jardineiro Fiel pela primeira vez ao John Le Carré. Na cabine estavam apenas ele, a mulher, seus dois filhos, o produtor e eu. Quando acabou a projeção, os cinco segundos de silêncio que se seguiram foram os mais longos da minha vida, até serem quebrados por alguma palavra positiva que nem ouvi direito qual foi, tal o barulho que fez o peso do mundo saindo dos meus ombros. Desta vez, por alguma razão, sinto que a tensão vai ser ainda pior. Terei que estar preparado.
Porque me coloco sempre nessas situações?
sexta-feira, 24 de agosto de 2007
Post 1: As Bruxas
Toronto - julho de 2007
Primeiro dia de filmagem. Não tivemos tempo para ensaios nas semanas anteriores como planejei, mas o início havia sido bom e estávamos entrando no embalo. Era a última cena a ser rodada no dia. Entre um take e outro corri até onde estavam os atores para pedir que se sentassem um pouco mais à direita na cama. Voltei rápido para minha cadeira em frente ao vídeo-assist para não cortar o clima, mas no caminho fui interceptado pela Ciça.
- São 4h15, preciso ir. Ainda tenho que deixar seu sapato para consertar em algum lugar do shopping em frente ao hotel e terminar de fazer a mala. Tem certeza que não quer que eu mande outro sapato pelo Daniel?
Depois de 15 dias juntos em Toronto, Ciça estava voltando ao Brasil para encontrar a Carolina, nossa filha, que chegaria em São Paulo no mesmo dia vinda da China. Beijei-a meio atrapalhado na frente de toda a equipe que aguardava o fim da despedida. Nos abraçamos por um tempo, cochichamos alguma coisa, e ela se foi. Senti uma certa sensação de abandono. Agora seriam sete semanas dentro de uma prisão em Guelph, esta cidadezinha a uma hora de Toronto, com praticamente nada para fazer a não ser o filme. Ao vê-la se afastar pelo corredor pensei pela centésima vez: “Para que fui aceitar dirigir este projeto?”
O Ensaio Sobre a Cegueira foi publicado no Brasil em 97 ou 98. Li o livro quase numa sentada e por uma semana aquelas imagens e a idéia de que tudo está por um triz me fizeram companhia. Naquele ano, minha vida andava estável demais, então pensei que filmar tal história seria o antídoto perfeito contra a incômoda sensação de segurança que eu sentia.
Num impulso, sem ter a mínima idéia de como adaptaria aquele romance, liguei para o Luis Schwarcz, o editor brasileiro do José Saramago, e pedi que ele consultasse o autor sobre seu interesse em vender os direitos para uma adaptação cinematográfica. A resposta veio rápida: nenhum interesse. Absorvi o tranco, comprei os direitos de Cidade de Deus do mesmo editor e esqueci o assunto.
Sobre as bruxas: como 2005 havia sido um dos piores anos da minha vida, decidi fazer de 2006 o meu período sabático: não assumiria nenhum compromisso. E foi assim por cinco meses. Em junho recebi um e-mail de um produtor canadense, que eu não conhecia, me perguntando se eu já havia lido José Saramago e se teria interesse em uma adaptação de um dos seus romances. Para ser simpático respondi: manda. Três dias depois, chegou em um envelope com um roteiro em inglês. Era Blindness, o Ensaio Sobre a Cegueira.
Devem existir milhares de diretores no mundo. O que fez com que aquele texto viesse cair justamente em minhas mãos? Essas coincidências são assustadoras. Talvez mais impressionado pela magia da coincidência do que motivado pela possibilidade de mergulhar naquele universo tão negro, dei um sinal verde: disse ao produtor Niv Fichman que havia gostado da adaptação, o que bastou para que mais três dias depois ele e o roteirista Don McKellar estivessem almoçando comigo em São Paulo.
Nunca fui um bom surfista, mas ondas do entusiasmo sempre me levam de arrasto, e eles estavam muito animados. Não consegui evitar. Dois meses e meio após esse encontro, lá estava eu no Festival de Toronto anunciando oficialmente o projeto.
Voltando à conversa em São Paulo. Ao sentir que o vento estava favorável, coloquei como condição para meu envolvimento que o filme fosse uma co-produção Brasil-Canadá e que ao menos metade dele fosse rodado em São Paulo. O Niv não só topou no ato como se entusiasmou com a possibilidade de filmarmos uma parte no Brasil. Sugeriu a participação de uma produtora japonesa, Sonoko Sakai, que poderia trazer 60% do financiamento, o que nos garantiria total independência de estúdios americanos e propôs ainda que convidássemos a Potboiller, a produtora inglesa do Jardineiro Fiel, para fazer toda a parte de contratos e negociações. Com a Andrea Barata Ribeiro e a Bel Berlinck, sócias da O2, como as produtoras do Brasil, fechamos o time.
Quando um jornalista me perguntou, durante o Festival de Toronto, como seria o filme, me dei conta de que não tinha nada muito sólido para responder. Menti que não contaria para não estragar a surpresa. Gosto muito do livro. Há um ano, isso seria tudo de concreto que eu teria a dizer. Não que esse fato me preocupa-se, sabia que com a ajuda dos parceiros descobriríamos o filme durante o processo de fazê-lo.
E o melhor: os parceiros seriam os de sempre, quase a mesma genial equipe que fez Cidade de Deus. César Charlone na fotografia, Daniel Rezende na montagem, Tule Peak na direção de arte, Gui Ayrosa no som direto com Alessandro La Roca na finalização e Ana Van Steen na maquiagem. A estes se somariam alguns canadenses que eu ainda não conhecia na época. Com essa turma me apoiando na criação, mas sem saber muito como seria o filme, embarquei na viagem. A experiência me ensinou a deixar antes o vento bater para então decidir o rumo a seguir. Esta é uma das vantagens da maturidade, aprende-se a confiar na intuição.
Em outubro de 2006 resolvi adiar a comédia que pensava em rodar antes e atacar esta Cegueira que já estava mais palpável. Marcamos as filmagens para início de julho de 2007 e saímos correndo para colocar o projeto em pé. O ano sabático durou apenas um semestre e eu me vi novamente no meio de um furacão.
Parece uma sina.
Primeiro dia de filmagem. Não tivemos tempo para ensaios nas semanas anteriores como planejei, mas o início havia sido bom e estávamos entrando no embalo. Era a última cena a ser rodada no dia. Entre um take e outro corri até onde estavam os atores para pedir que se sentassem um pouco mais à direita na cama. Voltei rápido para minha cadeira em frente ao vídeo-assist para não cortar o clima, mas no caminho fui interceptado pela Ciça.
- São 4h15, preciso ir. Ainda tenho que deixar seu sapato para consertar em algum lugar do shopping em frente ao hotel e terminar de fazer a mala. Tem certeza que não quer que eu mande outro sapato pelo Daniel?
Depois de 15 dias juntos em Toronto, Ciça estava voltando ao Brasil para encontrar a Carolina, nossa filha, que chegaria em São Paulo no mesmo dia vinda da China. Beijei-a meio atrapalhado na frente de toda a equipe que aguardava o fim da despedida. Nos abraçamos por um tempo, cochichamos alguma coisa, e ela se foi. Senti uma certa sensação de abandono. Agora seriam sete semanas dentro de uma prisão em Guelph, esta cidadezinha a uma hora de Toronto, com praticamente nada para fazer a não ser o filme. Ao vê-la se afastar pelo corredor pensei pela centésima vez: “Para que fui aceitar dirigir este projeto?”
O Ensaio Sobre a Cegueira foi publicado no Brasil em 97 ou 98. Li o livro quase numa sentada e por uma semana aquelas imagens e a idéia de que tudo está por um triz me fizeram companhia. Naquele ano, minha vida andava estável demais, então pensei que filmar tal história seria o antídoto perfeito contra a incômoda sensação de segurança que eu sentia.
Num impulso, sem ter a mínima idéia de como adaptaria aquele romance, liguei para o Luis Schwarcz, o editor brasileiro do José Saramago, e pedi que ele consultasse o autor sobre seu interesse em vender os direitos para uma adaptação cinematográfica. A resposta veio rápida: nenhum interesse. Absorvi o tranco, comprei os direitos de Cidade de Deus do mesmo editor e esqueci o assunto.
Sobre as bruxas: como 2005 havia sido um dos piores anos da minha vida, decidi fazer de 2006 o meu período sabático: não assumiria nenhum compromisso. E foi assim por cinco meses. Em junho recebi um e-mail de um produtor canadense, que eu não conhecia, me perguntando se eu já havia lido José Saramago e se teria interesse em uma adaptação de um dos seus romances. Para ser simpático respondi: manda. Três dias depois, chegou em um envelope com um roteiro em inglês. Era Blindness, o Ensaio Sobre a Cegueira.
Devem existir milhares de diretores no mundo. O que fez com que aquele texto viesse cair justamente em minhas mãos? Essas coincidências são assustadoras. Talvez mais impressionado pela magia da coincidência do que motivado pela possibilidade de mergulhar naquele universo tão negro, dei um sinal verde: disse ao produtor Niv Fichman que havia gostado da adaptação, o que bastou para que mais três dias depois ele e o roteirista Don McKellar estivessem almoçando comigo em São Paulo.
Nunca fui um bom surfista, mas ondas do entusiasmo sempre me levam de arrasto, e eles estavam muito animados. Não consegui evitar. Dois meses e meio após esse encontro, lá estava eu no Festival de Toronto anunciando oficialmente o projeto.
Voltando à conversa em São Paulo. Ao sentir que o vento estava favorável, coloquei como condição para meu envolvimento que o filme fosse uma co-produção Brasil-Canadá e que ao menos metade dele fosse rodado em São Paulo. O Niv não só topou no ato como se entusiasmou com a possibilidade de filmarmos uma parte no Brasil. Sugeriu a participação de uma produtora japonesa, Sonoko Sakai, que poderia trazer 60% do financiamento, o que nos garantiria total independência de estúdios americanos e propôs ainda que convidássemos a Potboiller, a produtora inglesa do Jardineiro Fiel, para fazer toda a parte de contratos e negociações. Com a Andrea Barata Ribeiro e a Bel Berlinck, sócias da O2, como as produtoras do Brasil, fechamos o time.
Quando um jornalista me perguntou, durante o Festival de Toronto, como seria o filme, me dei conta de que não tinha nada muito sólido para responder. Menti que não contaria para não estragar a surpresa. Gosto muito do livro. Há um ano, isso seria tudo de concreto que eu teria a dizer. Não que esse fato me preocupa-se, sabia que com a ajuda dos parceiros descobriríamos o filme durante o processo de fazê-lo.
E o melhor: os parceiros seriam os de sempre, quase a mesma genial equipe que fez Cidade de Deus. César Charlone na fotografia, Daniel Rezende na montagem, Tule Peak na direção de arte, Gui Ayrosa no som direto com Alessandro La Roca na finalização e Ana Van Steen na maquiagem. A estes se somariam alguns canadenses que eu ainda não conhecia na época. Com essa turma me apoiando na criação, mas sem saber muito como seria o filme, embarquei na viagem. A experiência me ensinou a deixar antes o vento bater para então decidir o rumo a seguir. Esta é uma das vantagens da maturidade, aprende-se a confiar na intuição.
Em outubro de 2006 resolvi adiar a comédia que pensava em rodar antes e atacar esta Cegueira que já estava mais palpável. Marcamos as filmagens para início de julho de 2007 e saímos correndo para colocar o projeto em pé. O ano sabático durou apenas um semestre e eu me vi novamente no meio de um furacão.
Parece uma sina.
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