quinta-feira, 6 de março de 2008

15: Sobre Fogo Amigo, Concessões e Montagem (de novo)


No final de novembro de 2007, com a quarta versão da montagem concluída, fui ingênuo ou arrogante a ponto de achar que o filme já estivesse quase pronto.

Certo disso, resolvi fazer uma sessão para amigos. Pensei que iria receber alguns aplausos, ouvir poucos toques, fazer os inevitáveis ajustes e acabar o processo. O Colégio Santa Cruz nos cedeu seu auditório, e eu nem fui conferir se o projetor estava calibrado corretamente para a cópia precária que tínhamos. Não estava, mas os detalhes técnicos não impediriam ninguém de apreciar o filme. Mas invés dos poucos toques que aguardava, o que recebi foi uma artilharia pesada à queima-roupa. “Fogo amigo”, como dizem em Brasília.

Não doeu tanto. Sabia que todos estavam apenas interessados em me ajudar a melhorar o filme. Amigos do peito – mesmo assim foi duro.
Após a projeção, os aplausos foram mais educados do que entusiasmados, e seguidos de uns cinco segundos de silêncio.

“Ferrou”, pensei. Para evitar o constrangimento geral, abri a fuzilaria com um tiro no próprio pé: “Não estou muito seguro em relação ao primeiro ato do filme. O que acham?”
“De fato está meio fraco”, um amigo emendou de bate pronto. Outras vozes se seguiram e por quase uma hora fui anotando a lista de problemas que me eram apresentados e que, pelo volume, me ocorreu organizar em ordem alfabética.

Um filme sobre cegueira onde o diretor não conseguiu enxergar o que só naquele momento se revelou. Irônico. Lembrei da expressão “gelatina inútil”, que é como Glocester se refere aos seus olhos em Rei Lear, por não ter enxergado que Edmundo, seu filho bastardo, o enganava. É também sobre este tipo de cegueira que fala esta história.

Não vou aborrecer-lhes (ou alertá-los?) sobre a lista de problemas encontrados no filme, porém o que mais me preocupou foi a dificuldade de alguns amigos em se relacionar com os personagens sem nome e história. Na literatura isso funcionou perfeitamente, mas no cinema percebi que não seria tão fácil.

Como uma espécie de instinto de sobrevivência, minimizei alguns comentários que pareceram ter mais relação com a história do Saramago do que com o filme. Ignorei outros tantos por serem subjetivos, questão de gosto pessoal. Mas fora esses, o resto do pacote não poderia ser ignorado e me preparei para começar uma quinta versão de montagem já no dia seguinte.

De 2h20, esta nova montagem foi para 2h12. Escaldados, só o Daniel e eu assistimos a nova versão, e depois de vê-la já partimos direto para o sexto corte, o qual seria mostrado para os distribuidores e investidores no início de 2008. Trabalhamos entre o Natal e o ano novo e despachamos os DVDs no dia 02 de janeiro.

Do Canadá, Japão e Brasil vieram boas notícias. Em NY, onde fui pessoalmente levar a cópia, deu trave. A eficiente turma da Miramax, distribuidora nos EUA, disse que gostou, mas fizeram muitas ressalvas, principalmente quanto à intensidade do filme.

Por contrato, o corte final é meu, mas os caras sabem o que dizem e aproveitei este expertise e a minha disposição para repensar mais uma vez a montagem. Achei que foram hipersensíveis em relação às cenas de violência sexual e não dei tanta importância aos comentários. Nenhum amigo no Brasil havia levantado este problema. Norte-americanos são mais moralistas, generalizei. Mas mesmo assim, como política de boa parceria, decidi diminuir um pouco a voltagem do filme. Um pouco.

Voltei para São Paulo no dia 14 de janeiro para atacar a sétima versão que deveria ser mostrada em Toronto, em um primeiro test screening. Diretores costumam odiar test screenings, mas eu gosto. Eles colocam de 300 a 500 pessoas num cinema, projetam o filme ainda não totalmente acabado, e na saída todo mundo preenche uma ficha de avaliação cujas duas perguntas mais importantes são:

1 – Você classificaria este filme como: excelente; muito bom; bom; regular ou pobre.
2 – Você recomendaria fortemente este filme para um amigo?; recomendaria o filme a um amigo?; recomendaria com ressalvas?; não recomendaria?

Fora isso, avalia-se a performance dos atores e o interesse despertado por cada personagem. Há perguntas sobre o andamento do filme – lento, correto ou rápido. Pede-se uma avaliação do interesse despertado pelo início e final do filme, e levantam-se os pontos positivos e negativos, informações que serão usadas para fazer o trailer e o cartaz.

Depois que todos entregam suas fichas, eles mantêm umas 25 pessoas na sala e tem início o chamado focus group, no qual se levantam questões específicas, incluindo perguntas que o diretor ou os produtores queiram fazer.

Pois bem, entre os dias 14 e 25 de janeiro, o Daniel e eu tivemos que montar a sétima versão tentando solucionar os problemas levantados em NY pela Miramax, fomos para BH por três dias remontar a trilha sonora e voltamos correndo para preparar todo o pacote para o temido test screening em Toronto. Fizemos em 11 dias o que levaria uns 25.

A turma da finalização começou a virar madrugadas para aprontar uma boa cópia. Dia 25 de janeiro, tirei literalmente a fita da máquina aos 45 minutos do segundo tempo e saí correndo para o aeroporto.
“Não vai dar tempo, você vai perder o vôo”, garantiu o motorista.
“Provavelmente, mas com o Nelson Jobim no Ministério da Defesa e os amigos do Lula na Infraero e na ANAC eu tenho chances”, respondi, “Vamos tentar”.
Batata! O vôo atrasou 50 minutos e eu embarquei.

Antes não tivesse embarcado
O test screening começou bem. A imagem e o som estavam excelentes. Havia 540 pessoas na sala e gente para o lado de fora. Até o meio do filme senti que a platéia estava comigo, então veio a primeira cena de estupro, quando umas 16 mulheres foram levantando e saindo. “Será que passamos do ponto?”, me perguntei. Veio então a segunda cena de estupro e mais 42 (!) mulheres deixaram o cinema. “Sim, passamos do ponto!”, respondi para mim mesmo. Eis que chega a cena onde a Mulher do Médico mata o Rei da Camarata 3, e nessa hora minha surpresa foi ainda maior: o cinema explodiu em aplausos e gritos de “well done” assim que a tesoura da Julianne Moore entrou na garganta do Gael.

Alguma coisa está errada quando uma platéia de civilizados canadenses comemora como adolescentes em cinema do interior uma dona de casa cortando a jugular de um ceguinho boa pinta. Capitão Nascimento revisitado. Como saio desta?

O resultado da pesquisa apenas confirmou o que eu já imaginava após a sessão. Os números não foram formidáveis. Entre as razões pelas quais mais pessoas não avaliaram o filme como excelente, os 5 primeiros itens
mencionados estavam relacionadas a intensidade:

1 – Cena de estupro muito forte. 2 – Cenas de estupros muito longas. 3 – Muitas cenas de estupro. 4 – Filme muito intenso. 5 – Filme difícil de assistir.

E pensar que eu estava com medo de ter feito um filme muito limpinho... Tive que dar o braço a torcer para o pessoal da Miramax, havia mesmo passado do ponto.

Para completar a noite desastrosa no focus group, uma mulher, que havia avaliado o filme como “pobre”, fazia questão de participar ativamente do debate levantando todo tipo de problema que passava pela sua cabeça perversa e despenteada. Se o braço da minha poltrona fosse removível provavelmente teria tentado acertar aquele cucuruto grisalho de onde saía sua voz irritante:
“The sexual violence is totally gratuitous in the film”, dizia.
“Fecha essa matraca e vá pentear esse cabelo minha senhora!”, eu replicava mentalmente. “E aproveita e bota uma tintura também!”

...

Perdão. Me deixei levar pela emoção.

...

Na manhã seguinte, após uma ótima reunião com os produtores e distribuidores, saí convencido que deveria dar mais alguns passos atrás na intensidade. Estaria me vendendo ao mercado? “Talvez sim”, sugeriu minha mulher. “Obviamente que sim”, afirmou minha filha. Mas é claro que eu neguei.

Lembrei de um excelente filme que muita gente nem percebeu que era tão bom por causa de duas cenas excessivamente violentas: Irreversível, do franco-argentino Gaspar Noé. Por acaso eu estava na premiére deste filme em Cannes e lembro que parte da platéia saiu no meio da sessão berrando impropérios contra o diretor. O Gaspar Noé se divertia com isso, mas, no meu caso, realmente gostaria que o os espectadores conseguissem recuperar algum humor ou boa vontade depois das cenas mais pesadas para chegar até o final da história. A última cena está bacana, vale ser vista.

Mais uma vez frustrada minha expectativa de fechar o filme, me vi novamente na sala de montagem rumo à oitava versão. Desta vez não só aliviaria a barra pesada, mas também tentaria uma idéia meio radical que me ocorreu no vôo de volta: desestruturar completamente a narrativa, até então linear, e com isso poder cortar mais uns 15 minutos do início do filme. Este trabalho tomou mais uma semana, e ao invés de um oitavo corte acabamos montando também um nono e um décimo, que levei à NY para decidirmos qual versão mostraremos no segundo test screening, que desta vez acontecerá nos EUA.

Hoje é dia 25 de fevereiro. Embarco amanhã para NY, mais uma vez para mostrar a versão escolhida. De tanto rever estas cenas minha paciência está se acabando. Imagine o que é ficar assistindo ao mesmo filme diariamente por cinco meses. Cenas ou falas que eu gostava anteriormente agora me parecem ruins ou desnecessárias para a trama, então eu vou cortando fora. Estamos agora com uma hora e cinqüenta e nove minutos de filme. Isso parece um processo de destilação ou de redução de um caldo. Tende a sobrar apenas o que interessa, o que tem sabor, quero crer.

Este décimo corte será mostrado para uma platéia norte-americana na quinta-feira, dia 28 de fevereiro. Se tudo correr bem, dia três de março começa a pré-mixagem e estarei livre do filme por duas semanas. Pretendo sumir nestes dias para conseguir reaver um certo frescor antes de começar a mixagem final. Se houver notícias neste ínterim , ou novas versões a caminho, escrevo mais um texto curtinho.

Mas que a Nossa-Senhora-dos-Test-Screenings seja misericordiosa comigo desta vez.

Amém.

terça-feira, 12 de fevereiro de 2008

14: Sobre música, codornas e unicórdio

Intróito: Caro leitor (se ainda houver algum depois deste tempo todo),

passaram-se uns dois meses desde meu último texto e confesso que parei de escrever por preguiça. Parei também porque soube que andaram traduzindo este blog para o inglês e que ele estava se espalhando mais do que o esperado. Isso me obrigaria a medir mais as palavras e eu correria o risco de ficar escrevendo um blog chapa-branca. Então parei. Só que agora resolvi colocar aqui mais uns dois ou três textos para ao menos fechar este processo que comecei. Chega de coisas não terminadas na vida. O texto abaixo foi escrito e abandonado em dezembro. Acabei de terminá-lo e aí está.

Impressionante: o vôo das 19h15 para Belo Horizonte saiu de São Paulo às 19h15. Desde que criaram a ANAC eu não pegava um vôo no horário, e com esse Nelson Jobim no Ministério da Defesa achei que minhas chances de voltar a sair e chegar no horário haviam ido para o espaço (desculpe a digressão, mas como um camarada deste pode imaginar que tem alguma chance de vir a ser presidente do Brasil? Se ele for fiel a sua própria história e inteligência, já já deve propor uma linha direta entre São Paulo e Belo Horizonte de submarino. É esperar para ver. Ele não tem a mínima noção de quem seja ou do que representa. É a mancha negra no currículo do próprio analista...) De qualquer forma o vôo para BH estava no horário. “Bom presságio”, pensei.

No dia seguinte iria finalmente ouvir as músicas do filme até então mantidas em segredo pelo Marco Antonio Guimarães, o maestro. O Marco Antonio é o criador do genial grupo mineiro Uakti, banda responsável pela trilha sonora do filme. Formam o Uakti: Paulinho, Arthur, Décio e o próprio Marco Antonio, que é violoncelista, mas nesse trabalho toca chori, gig, tampanário, únicordio, marimba de vidro com arco, entre outros instrumentos.

Na trilha, ele só não pega no violoncelo. Sorte a minha. Não que eu não goste de violoncelo: adoro, mas é que a idéia de fazer a trilha com o Uakti foi justamente trabalhar com timbres desconhecidos, com o intuito de colocar o espectador num universo sonoro tão novo quanto o mundo da cegueira. Orquestra, quartetos de cordas, pianos ou violões, por serem muito usados no cinema, nos falam de emoções de um mundo mais conhecido, e neste filme a música deveria levar o espectador para outro lugar.

O Marco Antonio contou que aprendeu marcenaria ainda criança. Há trinta anos, quando criou o grupo, dividia seu tempo entre ensaios, turnês e sua oficina, onde inventava os próprios instrumentos, trabalho inspirado pelo suíço Anton Walter Smetak – também violoncelista, também inventor de instrumentos. Smetak passou grande parte da sua vida na Bahia, onde desenvolveu um trabalho extremamente experimental.

As sonoridades que marcam as músicas do Uakti provêm de instrumentos artesanais, que contam com boa dose de criatividade: o Pan e a Marimba de Vidro. O primeiro é aquela série de canos de PVC afinados, percutidos com uma borracha ou com sandálias Havaianas, que foi popularizado no mundo pelos Blue Men; já o outro pode ser tocado com uma baqueta ou então com um arco de violino. E ainda há dezenas de outras invenções (para quem não os conhece bem, seus instrumentos e sons podem ser vistos e ouvidos no site http://www.uakti.com.br/).

Pela manhã fui encontrá-los no estúdio Acústico, onde estavam gravando e montando a trilha. Fui sem saber o que iria ouvir. No final de outubro, enviei um DVD com o segundo corte do filme, trocamos alguns e-mails, mas não recebi de volta nenhum acorde sequer. Achei que nesse encontro iríamos falar sobre idéias para a trilha e ouvir alguns rascunhos de música. Foi só no caminho para o estúdio que fiquei sabendo que eles já haviam gravado 60 faixas e que o trabalho estava praticamente concluído. É isso mesmo, 60 faixas, sendo que no filme há espaço para umas 45, no máximo.

Já vi criadores eficientes e independentes, mas o Marco Antonio bateu todos os recordes. É verdade que, na versão de montagem do filme que ele recebeu, usamos 100% de músicas do próprio Uakti, o que lhe dava uma boa referência do clima e dos timbres que gostávamos para cada cena. Por confiar nas hábeis mãos do músico, a notícia de que a trilha do filme ficou pronta antes mesmo da montagem não me deixou em pânico. Tive apenas uma espécie de ansiedade galopante no trajeto até o estúdio, o que só dificultou um pouco a digestão das broas de milho do meu café da manhã. Nada grave...

O Uakti usa instrumentos feitos com cabo de machado, tampas de panelas, sarrafos, garrafões plásticos de água, mas ao mesmo tempo o Marco é bastante hi-tech. Incorpora os recursos digitais em seu processo criativo: ele escreve as partituras a lápis num caderno com pautas, grava cada instrumento separadamente e completa seu trabalho de criação juntando as partes no Pro-Tools, um programa de composição. Além de uma enorme liberdade criativa, esse processo deixa em aberto possibilidades de rearranjo das músicas, coisa fundamental quando ainda não se tem o corte final.

Como havíamos combinado a criação de uma trilha mais minimalista, sem temas grandiloqüentes, ele mostrou seis músicas para serem colocadas em cenas específicas, com pontos de entrada e saída definidos; depois, me apresentou mais um pacote de 54 temas compostos para tubões, trilobitas, tri-lá, torre, balão, garrafão, tambor d’água, tambor metálico, lata-de-leite-em-pó-em-dó, tubo-grande, peixe, tampanário, garrafa soprada, únicordio, etc.

Após uma rápida introdução para cada composição, ouvíamos tentando imaginar para qual cena do filme funcionaria. Evidentemente o Marco tinha suas sugestões, mas percebi que ele estava mais interessado em criar um universo sonoro particular para o filme, deixando a nosso critério (meu e do Daniel) a decisão final sobre onde iria cada uma daquelas composições. Independentemente de onde colocássemos cada música, a sonoridade que criou para o filme estaria garantida.

Ter tal liberdade de uso da música me surpreendeu, mas não desagradou. Faixas que o Marco imaginou para algumas cenas específicas inevitavelmente iriam parar em outras. Gosto de deixar uma cena ir para um lado e vir com a música falando quase o oposto. Música leve para cena dramática. Um velho truque infalível. Aquela audição foi como receber de presente um jogo de armar. Música para armar. Um processo muito diferente que eu jamais havia feito. Voltei para São Paulo com o pacote de canções debaixo do braço, ansioso para começar a colocá-las no filme (e com 1h30 de atraso. Jobim e sua turma da INFRAERO e ANAC tardam, mas “não falham”).

A montagem já estava em sua sexta versão. Muitas cenas precisavam de uma música que as fizesse crescer em tensão, ou que fossem mudando de clima pouco a pouco. Mas como a maioria das músicas eram mais minimalistas, conforme o combinado, percebemos que às vezes o esforço dos atores ou da montagem para colocar ou tirar energia de uma cena estavam sendo atenuados pela música.

Para conseguir estas mudanças de clima, começamos então a combinar mais de uma música numa mesma cena. Às vezes somávamos três ou quatro pistas. Neste processo, o Daniel se sentiu bastante incomodado e insistia que deveríamos mandar tudo de volta para o Marco e pedir-lhe que fizesse sua versão de montagem primeiro, para afinarmos a partir daí. Só que não havia tempo. Tínhamos que terminar uma versão do filme para apresentá-lo aos distribuidores em Nova York, e então fomos seguindo assim mesmo. Acabamos a montagem da música na correria. Mandei uma cópia para BH no início de janeiro e em seguida voei para NY. Ao retornar, recebi um e-mail do Marco Antonio, chateado com o que havíamos feito com seu trabalho. Tomamos um pito por termos feito algo para o qual não estávamos equipados tecnologicamente, e muito menos com os conhecimentos musicais necessários.

A solução foi combinarmos uma nova ida a BH onde trabalharíamos juntos ininterruptamente em cada entrada até sair com a música do filme pronta. Isso aconteceu em meados de janeiro.

O Alexandre, como um perfeito anfitrião mineiro, mandou preparar ali na cozinha do seu estúdio deliciosos tutus, carne de porco, angu e até codornas, para não termos que sair da imersão. Em três dias, sem muita pausa, o trabalho foi completado e saímos todos felizes. Partindo da nossa montagem meio Frankenstein, o Marco foi simplificando o trabalho, deixando as músicas por mais tempo, evitando algumas misturas, tirando efeitos que pontuavam demais a ação. Trilha didática é ruim mesmo, aprendemos na prática. Ele fez uma espécie de limpeza geral e sentimos que o filme ganhou com isso. Tudo ficou mais simples e ao mesmo tempo mais complexo – se é que essa contradição possa ser conciliada.

Agora, no início de fevereiro, já estamos na oitava versão da montagem. Como todos os ruídos já estão sendo enviados de Curitiba pelo Alessandro Larocca, nosso sound-designer, provavelmente teremos que remontar algumas músicas, mas aí será um trabalho mais simples, apenas de adaptação do que já está pronto. Estamos na reta final (espero).

Em breve notícias do sofrido processo de montagem e da artilharia verbal dos amigos.

quarta-feira, 21 de novembro de 2007

Post 13: Sobre Montagem, Juntões e Frame-Fucking



Apagamos a luz para fingir que estávamos numa sala de cinema e tiramos o telefone do gancho, um saiu para beber água outro para ir ao banheiro. Assistir ao filme montado pela primeira vez é uma experiência tensa. Mesmo conhecendo cada linha do texto, o tom em que cada frase foi falada, os enquadramentos, mesmo depois de já ter decorado como estão montadas cada seqüência ou saber em que instante a música de referência vai entrar. Mesmo assim, eu estava ansioso. Aparentemente tudo parecia estar correto, mas o problema é que neste trabalho 5 + 5 pode ser igual a três e essa era a hora de conferir a soma. Mas o que tem que ser feito, tem que ser feito. “Dá logo play nessa bagaça”, pedi. Quando o filme acabou eu não estava deprimido, sentia apenas um leve mal-estar. “Talvez seja bom sinal”, pensei. “Acho que vai dar para salvar”.

O Daniel Rezende começou essa montagem em julho, em Toronto, mas isso a que assistimos ainda não era nem um primeiro corte, era apenas um “juntão”, como ele chama. Um “juntão” são todas as cenas “armadas” e enfileiradas na ordem do roteiro. Mesmo quando não gostamos de alguma coisa que foi filmada, ela vai para o bolo. (Só mesmo as cenas que ficaram vergonhosamente ruins é que são cortadas de cara. Certas coisas devem ser esquecidas). Claro que sempre há espaço para se tentar algumas transições interessantes ou fazer algumas experimentações mais arriscadas e gosto de ser surpreendido, mas, a princípio, a idéia do juntão está mais para lição de casa.

Deu duas horas e quarenta minutos. Muito longo. Como não pretendo ficar gastando o precioso tempo do espectador, minha idéia é deixar este filme com umas duas horas no máximo, então a próxima missão era jogar 40 minutos no lixo e tentar achar uma história com bom ritmo no que sobrar. Este é um momento do processo que gosto, é concentrado, há espaço para criação, não há prazos malucos e nem pressão externa. É quando os problemas de roteiro ou interpretação são percebidos e contornados, onde um personagem pode ser modificado ou um canastrão pode virar um ator razoável. (Aliás se você pensa em seguir a carreira de ator eis o melhor conselho que posso dar: Suborne sempre o montador. Leve chocolate, flores se for uma montadora, até um vinho mais caro se seu trabalho estiver realmente fraco). Há um milhão de maneiras de melhorar uma atuação na montagem. Nos momentos mais vergonhosos pode-se cortar para a cara do outro ator evitando o vexame, uma fala mal falada pode ser regravada e usada com a imagem do ator de costas e daí para frente. É muito fácil tapear o espectador (sinto muito) e confesso que tenho um certo prazer quando consigo fazer isso sem deixar marcas da trapaça. Mas neste caso, conforme o previsto, não precisaremos usar estes truques sujos, nosso elenco é muito consistente. O trabalho maior desta montagem será achar o tom certo para cada personagem. Coloca-se um olhar a mais, uma pausa a menos, põe-se aqui, corrige-se ali, é como temperar um ensopado. Neste processo tentamos deixar o médico mais arrogante no início, sua mulher mais bobinha, a Garota de Óculos Escuros mais fria, e assim por diante e então, durante o filme, todos vão se transformando, criando o chamado “arco do personagem”. No final das contas, 98% dos filmes são sobre isso, sobre transformação de personagens.

Secar o juntão é mole, rapidamente tudo que está sobrando vai caindo. Menos gordura e mais músculos. Quem não gosta? Em cinco dias, chegamos ao primeiro corte que baixou para duas horas e vinte e cinco minutos. Tirar 15 minutos de cara foi um bom começo, mas ainda faltava tirar mais uns 15. É neste ponto que a coisa vai ficando mais complicada. Tem um momento em que as cenas já chegaram no tamanho certo, mas o filme ainda está longo. Se cortar mais as cenas, o filme fica frenético, sem clima, mas se não diminuir a duração total, o filme fica arrastado. Filme lento é bom mas filme arrastado é imperdoável e não há nada pior do que ouvir na saída do cinema o camarada dizer: “O filme é bom mas poderia ter 15 minutos a menos”. “Vá lá tentar cortar então, sabichão!”, dá vontade de responder. Mas como este não é um problema do espectador, a solução foi pegar estas duas horas e vinte e cinco que tínhamos no primeiro corte e partir para a terceira rodada da montagem em direção ao segundo corte.

Nesta nova passada, como tudo que estava visivelmente sobrando já havia caído, os cortes são praticamente invisíveis. Vão embora as pausas nas falas dos atores. (Alguns atores tendem a alongar as suas pausas ou para ganhar mais tempo de tela ou, às vezes, por terem esquecido suas falas. Cortando de uma câmera para a outra esse, tempo morto some.) Uma caminhada pelo corredor é abreviada, uma chave que gira na porta é substituída apenas pelo som, cortam-se dois passos do ator em direção ao carro, falas de início de cena são sobrepostas na cena anterior, textos que não sejam realmente importantes são eliminados e, usando um grande repertório de truques como estes, o filme vai ganhando ritmo. Nesta terceira passada, chegamos a duas horas e dezessete minutos, melhor, mas pelo menos mais uns 10 minutos devem sair só que já não há mais de onde tirar gordura então esta é a hora de pensar quais cenas podem ser despachadas direto para o DVD, em geral cenas que são boas mas que manteriam a história em pé se fossem cortadas. É neste ponto que estou hoje. Cortando cenas boas.

Fora o ritmo, muitas vezes algumas cenas simplesmente não chegaram onde deveriam ter chegado, ou pela direção óbvia (que muita gente chama de clássica), ou pela atuação, ou porque alguma fala que deveria estar lá não foi escrita. Nesta hora entra a operação salvação de cena. Com o Daniel, aprendi que quando um problema parece insolúvel mas a cena não pode ser cortada do filme, ao invés de ficar adicionando planos ou gravando novas falas para tentar deixa-la mais clara ou mais eficiente a melhor solução é seca-la ao máximo, passar o mais rápido possível por ela na esperança de que o espectador não perceba o problema. Aprendi também que ficar pondo e tirando fotogramas aqui e ali, (frame-fucking, como chamam os americanos) nunca vai resolver o problema de uma cena mal resolvida anteriormente. Há também uma infinidade de truques de montagem para deixar ao menos digno o que foi mal feito na filmagem, mas às vezes uma cena parece mesmo condenada ao fracasso e pode comprometer o filme todo, essa é sempre uma constatação dolorosa quando acontece. E sempre acontece. Por sorte, neste filme estamos livres deste mal, aqui podemos sempre contar com um último recurso que funciona como uma espécie de colete-salva-vidas. Infalível:

Tudo na cena está ruim? Corta para um close da Julianne Moore. Aí é xeque-mate.


PS: Fui assistir a “A Casa de Alice”. Filmaço. Direção muito sensível. Um ator melhor do que o outro. (Aviso: não sou amigo do diretor e nem dos atores, é só um toque porque o filme é bom mesmo.)

segunda-feira, 12 de novembro de 2007

Post 12: Sobre filmar em SP, Síntese e Culpa



Escrevi este texto faz um tempo, depois reli, achei meio desinteressante e fui deixando de lado. Ontem, na festa de casamento de uma prima, me perguntaram se eu iria interromper esse diário assim sem aviso, como o final de um filme do Kiesloswsky. Depois deste comentário, mesmo achando o texto meio desinteressante, resolvi prosseguir nesta empreitada. Aí vai:

Quando os personagens desta história saem do asilo, não há mais carros ou aviões ou qualquer tipo de motor ligado na cidade, então precisávamos de um lugar silencioso para filmar em São Paulo. Encontramos na Granja Vianna a casa do Márcio Amaral, coincidentemente meu amigo e vizinho. Irresponsavelmente, ele topou se mudar com a família para um hotel por um mês e deixou que invadíssemos sua casa, que tirássemos todos os móveis, destruíssemos seu jardim e ainda deixássemos o Juca, seu labrador, deprimido. Não temos cerca separando nossos terrenos, então literalmente, eu acordava, atravessava o jardim e estava no set. Um filme deste tamanho ficou parecido com filme de estudante, filmado praticamente no quintal. A grande vantagem de ter feito assim não foram só os minutos a mais de sono todos os dias, mas a privacidade. É mais constrangedor para alguém tocar a campainha de uma casa e pedir para entrar para dar uma olhadinha, então o set foi sossegado.

Rodar no meio da cidade, porém, foi mais movimentado. Ao chegarmos nas locações, sempre havia gente nos esperando, eu não entendia como as pessoas adivinhavam onde estaríamos rodando, até um dos curiosos me explicar que havia um grupo no Orkut que divulgava nosso plano de filmagem regularmente. Aliás, não entendo muito o interesse das pessoas em assistir a filmagens. Filmagem é a coisa mais chata se você não está trabalhando. Talvez mais chato do que assistir a um dentista obturando. (Eu nunca liguei para minha dentista para pedir para ir vê-la fazer uma obturação). Mas não atrapalhou, pois a platéia sempre colaborava, o problema é que tínhamos a idéia de não mostrar imagens do filme antes dele ser lançado, nem mesmo no trailler, mas, com esse vazamento de informação, alguns jornais mandaram fotógrafos e tivemos que desistir desta estratégia. O Estado de SP nos pediu permissão e publicou uma reprodução que fizemos de um quadro do Brueguel. É uma bela foto, mas me arrependi de ter liberado. Mas agora que já foi feito, o melhor é escancarar de vez. Eis aí a foto do nosso set pelo Estadão e abaixo o Brueguel:






A idéia de reproduzir quadros num filme não é original mas, nesta história sobre visão, trazer referências do imaginário humano ao longo do tempo pareceu fazer algum sentido. Fora este Brueguel, quem conhece um pouco de pintura vai identificar referências a Hieronymus Bosch, Rembrandt, Malevitch, alguns dadaístas, cubistas, Francis Bacon, gravuras japonesas, e principalmente algumas telas do Lucien Freud que nem referências são, são cópias mesmo. Homenagem. O que me espantou ao reproduzir estes quadros foi constatar que apesar do nosso empenho em buscar imagens expressivas no filme, cada vez que estas referências aparecem na tela elas saltam. Isso talvez explique porque estes artistas resistiriam ao tempo. Em seus trabalhos, conseguiram alguma espécie de síntese que mesmo nessas cópias, fora do seu tempo, ainda continuam expressivas.

Buscar imagens/síntese que expressem o filme como um todo é uma espécie de distúrbio que tenho. Sempre que penso em algum filme, me vem associada uma imagem como se fosse um registro emocional das duas horas de projeção. Às vezes são imagens espetaculares. Por exemplo: Penso em “Fitzcarraldo”, do Herzog e me vem a imagem daquele barco preso por cordas puxadas por centenas de índios sendo arrastado morro acima, não por acaso a imagem do pôster. Mas às vezes são imagens bem mais simples, como a expressão da Liv Ulman olhando a Ingrid Bergman tocar Sonata ao Luar em “Sonata de Outono” ou a mãe do Bambi correndo na neve antes de ser baleada pelos caçadores. Sempre que ouço a expressão “cinema brasileiro” me vem um plano de “Vidas Secas”, aquela família andando contra a claridade do chão árido. Ao fazer um filme, fico tentando criar ou encontrar uma imagem que tenha este poder de síntese. Lembro que em “CDD” havia me proposto a nunca filmar garotos apontando a arma em direção à câmera, um enquadramento clichê de filmes policiais, mas lá pelo meio da filmagem comecei a perceber que não tínhamos uma imagem forte ainda e apelei. Acabei rodando uma cena onde o Douglas Silva, Dadinho, apontava seu trinta-e-oito para a câmera. Intencionalmente, coloquei-o na frente de uma bananeira e pedi para ele dar risada enquanto atirasse. Foi uma atitude mais marqueteira do que artística, confesso. Imaginei que essa poderia ser uma imagem surpreendente do Brasil, o clima tropical, a alegria do moleque negro, não por causa de um samba ou de um gol, mas pela posse de uma arma. Dois anos depois, vi no metrô de Paris, em enormes pôsters, o Douglas apontando seu trinta-e-oitão para a francesada nas plataformas. Mesmo sendo uma imagem contrária ao que eu queria falar com o filme, onde a violência não deveria ser espetacularizada, os distribuidores franceses viram ali uma espécie de síntese e escolheram aquela imagem para representar o filme.

Descobrir qual é a imagem/síntese de um filme me parece tão importante quanto conseguir formular um “story-line” (resumir o filme em apenas uma frase). Em “Blindness” eu não sei exatamente qual será esta imagem/síntese, mas sempre imaginei um filme opressivamente luminoso. Em nossas 12 semanas de filmagens, conseguimos bons momentos de brancura e agora torço para que no meio das 45 horas de material rodado ou dos 3.888.000 fotogramas expostos, haja ao menos um que consiga traduzir esta história. Se não houver paciência, pois as filmagens já acabaram. E acabaram com festas e jantares. Como sempre.

A Ciça, minha mulher, e eu chegamos meia hora antes do jantar de despedida, que foi oferecido pelo Hotel Emiliano, e fomos direto para o quarto da Julianne. O Mark Rufallo foi até seu quarto pegar uma garrafa de vinho branco, nos espalhamos no sofá e coloquei o DVD com algumas cenas do filme já montadas. Não chamamos mais ninguém para assistir, só nós quatro. É duro este tipo de apresentação, é como fazer uma strip-tease, muita exposição, me sinto constrangido.

A Julianne parece que gostou da meia hora a que assistiu e só achou que estava meio exagerada numa cena em que ela chora. Fiquei de rever o material. O Mark, como era de se esperar, elogiou o que viu, elogiou a Julianne, mas ficou arrasado com sua própria performance. Típico. “Eu disse que você deveria ter chamado o Sean Penn”, falou. De fato algumas vezes, depois de acabarmos uma cena ele dizia: “Acho que o Sean Penn ainda está disponível, não me ofendo se você quiser me substituir”. Uma daquelas piadas que não são totalmente piada. Já vi muita gente culpada na vida, mas o Mark bate todos os recordes. É pior do que eu.

Ontem, o Gael (que deu um olé na imprensa brasileira dizendo que tinha voltado para o México, mas ficou tirando umas férias no Brasil) passou na sala de montagem para ver um pouco do filme e depois de elogiar as performances dos colegas me perguntou se algum ator já havia assistido a alguma coisa. Disse que só o Mark e a Julianne haviam visto algumas cenas. “E o Mark achou que estava péssimo, certo?”, perguntou. Risadas. O pior (ou melhor) é que ele está bem para burro, começa o filme como um médico meio arrogante, muito seguro de si mas, depois que perde a visão, começa a se enxergar. E desmonta. Ele parece uma pessoa de verdade, e não o típico protagonista machão de cinema americano, mas vá tentar convencê-lo disso. Talvez a solução para o seu caso seja aumentar o número de sessões de análise ou trocar de analista. Vou sugerir.

E agora pretendo ficar bestando por uns 15 dias, até o início de Novembro, quando começo a acompanhar a montagem em tempo integral.

Coitado do Daniel.

segunda-feira, 29 de outubro de 2007

Post 11: Sobre bobeira, gincanas e posições de câmera.

No foto: Don McKellar (de camiseta vinho), Winnie (continuista), eu, Cesar Charlone, Julianne Moore, Rhaul (dolly grip), e, de costas, a careca do Walter Gasparovic (assistente). Sobre o monitor, meu roteiro de capa azul (que já não está mais entre nós)


Já eram 4h37 da madrugada e os pardais começaram a piar sem graça. Ouvir passarinho cantando antes de ir dormir, em geral, me deixa deprimido. Comecei a rir de bobeira, arranquei o fone do ouvido, desliguei o walkie-talkie e desisti. Estávamos em 10 pessoas no câmera-car do Stanley, rodando pelo centro de São Paulo, sonados, depois de 14 horas de filmagem na rua. Eu olhava para os quatro monitores que transmitiam o sinal das duas câmeras que estavam na pick-up, e de outras duas escondidas dentro do carro que o Don Mc’Kellar dirigia, e torcia por oito segundos de alguma imagem que completasse a cena em que o Ladrão fica cego, mas sempre alguma coisa atrapalhava. Atrás do carro do Don/Ladrão vinha um comboio com uma limusine branca enorme, um táxi destes amarelos e outros carros simulando uma rua movimentada em alguma cidade do mundo. O Don tinha que seguir o câmera-car mantendo a mesma velocidade e uma distância fixa, tarefa complicada nas ruas de S. Paulo, cheias de faróis, mais complicada ainda pelo fato dele não dirigir regularmente e nunca ter guiado um carro com marchas. Isso já seria um bom desafio, mas havia um agravante, o Don é míope mas seu personagem não é, então tinha que fazer tudo isso sem óculos e para completar, a cada 10 segundos, o Serjão, eletricista, o ofuscava direcionando um refletor para seus olhos simulando faróis de outros carros. A cerejinha neste bolo de convite-ao-acidente é que ele dirigia um carro protótipo da Fiat, movido a benzina, e cada vez que parava num sinal o carro morria e não pegava mais. Quando ouvi o primeiro pardal, olhei o relógio e me dei conta que estávamos parados há quatro minutos esperando o Fiat se mover. Cansados, sem reação, apenas olhávamos para o carro lá, paradão. Contávamos só com a ajuda da Analia, operadora de câmera que estava escondida no banco de trás do Fiat com o Don e poderia ajudá-lo. Então, o César anunciou que, além de não falar inglês, a Anália não sabia dirigir. Nosso bote salva-vidas naufragou. “Xeque-mate”, pensei. E joguei a toalha.

Minha disposição para este tipo de gincana já não é mais a que era. Madrugadas, movimentos de grua complicados, muitos figurantes, cenários enormes, cenas com muitas situações paralelas a serem mostradas me dão uma certa preguiça. Filmar com muitas câmeras também complica bem. O Gui, som direto, que o diga. Ele vive sinucado sem ter por onde entrar com seu microfone. “Tem câmera por todo lado”. Reclama. “Dá seu jeito!”, respondo. E ele vai dando.

Rodar com muitas câmeras é bom por não termos que repetir a mesma cena 40 vezes para conseguir diversos ângulos, e é ótimo pois dá muita cobertura para o montador; mas, durante a filmagem, muitos ângulos simultâneos pode ser dispersivo. Neste filme, o César Charlone e eu aprimoramos uma boa maneira de trabalharmos com quatro câmeras, pode até ser chamado de método, tem uma certa lógica, contrariando o que pensam os assistentes de direção e parte da equipe. Eis o “método” (que obviamente não é sempre seguido com o rigor que descrevo aqui):

Para planos gerais da cidade, ou imagens com muitos detalhes, estamos usando uma câmera chamada Vista Vision. Ela roda em 64mm, gera uma imagem bem definida e estável. Em geral, esta câmera só trabalha em algumas externas, onde é usada apenas para um ou dois ângulos pré-determinados e depois descansa o resto do dia. Ela consome negativo como um Dodge Dart consumia gasolina – ou, para quem não sabe o que é um Dodge Dart, como um deputado consome verba de representação. Vorazmente.

Depois, temos a câmera A, uma 35mm que conta a história. Quando é possível criar uma imagem instigante e narrativa ao mesmo tempo, ótimo. Se não for possível, esta câmera tem que priorizar a clareza da história, ou seja, mostrar o lugar onde estão os atores, cobrir os diálogos e as reações dos personagens deixando claras as intenções da cena. É meio convencional às vezes, mas resolve.

Rodando ao mesmo tempo, temos sempre uma câmera B, que tenta contar a mesma história de forma mais indireta. Cobre a cena através de reflexos, pelas costas dos atores, faz os closes, busca enquadramentos menos óbvios. Mostra a nuca em vez do rosto, uma sombra em vez do corpo do ator. Sugere a história mais do que a mostra. Se a câmera A é prosa, a câmera B é poesia. Desta câmera deverão sair “os melhores momentos” do filme, mas como no futebol, sabemos que só a jogada de efeito não funciona. É preciso ter uma câmera “A” levantando para esta “B” cortar.

Finalmente, há uma câmera 16mm que entregamos ao acaso, ou para Deus, como diz o César. Usamos basicamente para desperdiçar negativo. Ela em geral fica amarrada com fita crepe num canto e quase sempre roda sem operador, é acionada por quem estiver mais perto. O aproveitamento das imagens desta câmera-do-acaso é baixo. É como lançar uma rede sem grandes expectativas para eventualmente puxarmos imagens inesperadas. E acontece. Curioso que sempre chamamos esta atitude de buscar imagens ao acaso de “pescaria”, achei que nós tivéssemos inventado esta expressão, mas descobri agora, com o canadenses , que eles também usam a mesma expressão: “Fishing”.

O uso de câmeras simultâneas não é muito habitual no Brasil, pois aparentemente encarece um filme. É preciso mais equipe de câmera, gasta-se mais com aluguel de equipamento ou com negativo. Mas se computarmos a redução do numero de diárias que isso gera, acho que a conta se fecha a favor. Neste caso tínhamos orçado 57 dias de filmagem mas devemos terminar o filme em 50. Essa semana economizada está diretamente relacionada ao monte de câmeras e (talvez) esta economia compense os custos extras mencionados. Mas, mesmo que não haja vantagens econômicas, essa maneira de filmar vale a pena. Ela nos permite quase nunca repetirmos um mesmo enquadramento em duas horas de filme e libera o ator que, nem que queira, consegue interpretar para a câmera, já que está cercado. Também me livra do chato (e às vezes inútil) trabalho de decupar o filme. O que fazemos é montar a cena como se fosse teatro, sem pensar em câmeras e depois cobrimos o máximo possível. A decupagem acontece na sala de montagem, o que é uma vantagem, como tenho constatado, pois muitas vezes entre a imagem bem enquadrada da câmera A, que foi previamente planejada, ou a mesma cena meio encoberta da câmera B temos usado a segunda opção na montagem. Neste filme, que é sobre olhar, mas não ver, esconder um pouco o que se passa ajuda a colocar o espectador no mundo dos personagens cegos, quero crer. De qualquer maneira, eu dificilmente planejaria um enquadramento onde um ator cobre o outro intencionalmente. Esses momentos acontecem por sorte e às vezes são ótimos.

O César, em geral, defende que a história seja contada mais pelas imagens e sons e reclama da quantidade de palavras do roteiro. Certamente o Marco Antonio Guimarães, que vai fazer a trilha, apoiará esta visão. Atores e roteirista gostam de diálogos e às vezes não entendem o exagero de posições de câmera que usamos. Eu tento ter o máximo dos dois mundos. Apoio sempre sugestões de novos pontos de vista que não haviam me ocorrido e incentivo os atores a aumentar seus textos para ajudá-los a entrar na história. Faço isso mesmo sabendo que cortarei o excesso de palavras na montagem, ou que dificilmente usarei um determinado ângulo que está sendo rodado. Mas nunca se sabe, então arrisco. O tempero entre a narrativa das palavras e das imagens vai ser encontrado na montagem, que é quando realmente o filme toma forma. Já aprendi que numa sala fechada, tranqüila e concentrada, nem sempre a decisão que me pareceu mais acertada no set prevalecerá, então, na dúvida entre uma opção ou outra, rodo as duas.

Admiro a capacidade de abstração de diretores que conseguem pensar seus filmes de ponta a ponta com antecedência, diretores que desenham storyboards e depois cumprem à risca o que planejaram. Já tentei fazer isso, mas fico tão focado em fazer o que planejei que acabo não vendo as idéias vivas que acontecem no set. Já filmei muito como um clarinetista que toca seguindo uma partitura, hoje acho que filmo mais como jazz. Você me entende.

segunda-feira, 22 de outubro de 2007

Post 10: Sobre Cabeça de Vento, Narradores e Homenagens

Mark Rufallo respira o ar do rio Pinheiros
(foto de Yoshino Kimura, a Mulher do Primeiro Homem Cego)

Parece uma maldição que me persegue. Perdi meu roteiro novamente. Digo novamente pois também perdi meu roteiro três semanas antes de acabar “Cidade de Deus” e o mesmo aconteceu com o roteiro do “Jardineiro Fiel”. Claro que eu poderia imprimir uma nova cópia, mas nem é o caso, de tanto lê-lo já decorei completamente a história. O que me faz falta não são os diálogos ou as descrições das cenas, mas sim as anotações e idéias que fui rabiscando nos cantos ou no verso das páginas desde dezembro do ano passado. As idéias que me pareceram boas eu até lembro, mas certamente vou esquecer detalhes que nunca chegarão a ser filmados. Merda. O pior é que eu tenho certeza de onde deixei. Estava na prateleira de livros no cenário da casa do Médico. Alguém tirou do cenário, provavelmente para não aparecer em quadro, enfiou numa caixa qualquer e eu nunca mais vou vê-lo, já sei. Agora tenho que terminar de rodar assim mesmo, às cegas. Já vi este filme.

O destino de um roteiro é sempre muito triste, esse que perdi levou 5 ou 6 anos para ser concluído e no dia seguinte em que acabarmos a filmagem, passaria a ser papel inútil. Pouquíssima gente vai se dar ao trabalho de ler aquelas páginas novamente. As cópias que tiverem sorte serão recicladas, a maioria vai para o lixo mesmo. É triste porque pouca gente se dá conta da complexidade e do número de questões que envolve a criação de um roteiro. Quer um exemplo?

Quem conta a história? Esta é em geral uma das primeiras decisões que um escritor tem que tomar. No cinema é a mesma coisa, a escolha de quem será o narrador transforma completamente um filme. Nos outros (poucos) filmes que fiz esta questão é facilmente respondida mas nessa Cegueira a coisa é mais complexa. Vou teorizar um pouco. Para quem não gosta de blá, blá, blá, até o próximo post.

No começo de “Blindness”, quem conta a história é o diretor (eu mesmo) com a ajuda da equipe, claro. Conto a história colocando a câmera, os microfones e com eles, o espectador, sempre no meio da ação. Por eu ser um narrador privilegiado, que já leu o roteiro até o final, você, o espectador, vai perceber que há uma epidemia se alastrando antes mesmo que os personagens se dêem conta disso, coitados. Como também sou um contador que está fora da trama, posso pular de um personagem para outro e acelerar os acontecimentos para chegar mais rápido ao segundo ato quando todo mundo vai para uma quarentena num asilo. (Sinto muito para quem não leu o livro e não sabe do que estou falando. Aliás, quem não leu deveria ler. É livro que se devora num final de semana). Voltando: Quando a ação se desloca da cidade para o asilo o contador da história deixa de ser o diretor e passa a ser a Mulher do Médico. É através do seu olhar que vemos o que acontece. Colada nela, a câmera fica trancada no asilo de quarentena também, vê ou sabe apenas o que a Mulher do Médico vê e sabe. Esse é o momento em que a trama desacelera um pouco para que o espectador embarque na viagem desta personagem vivendo junto sua experiência. Por sorte tenho a Julianne Moore a bordo e definitivamente ela sabe como fazer os espectadores compartilharem as experiências e emoções desta Mulher do Médico.

A história segue, a situação evolui devagar. Passado um pouco da metade do filme entra em cena um novo personagem, o Velho da Venda Preta (Danny Glover), para mim um alter-ego do Saramago, com o já disse aqui. De repente, sem mais, ele começa a narrar o que se passa no asilo. Diferente do olhar da Mulher do Médico, que nos mostra os fatos, a voz deste narrador tardio, o Velho da Venda Preta, nos conta o que se passa na cabeça dos personagens, conta uma história mais profunda narrando as implicações e conseqüências do que acontece, criando uma nova camada de leitura para o filme. Então, no terceiro ato, quando todos os personagens voltam para a cidade, os dois outros narradores, o diretor e a Mulher do Médico, se juntam ao Velho da Venda Preta e a história passa a ser narrada alternadamente pelo olhar dela, pela voz dele e pela câmera, que coloco onde bem entendo (ou onde o César sugere ou permite).

Esta mudança de narrador afeta a linguagem e estabelece o ritmo do filme. O primeiro ato é mais clássico, a história avança agilmente da maneira como acontece na maioria dos filmes. No segundo ato, o da observação da Mulher do Médico, o filme viaja mais, é menos objetivo e divaga como uma mulher. (Sim. As mulheres são melhores em divagações do que os homens) Finalmente, quando entra a narração do Velho da Venda Preta o filme volta a ter uma trama mais linear, mas somada a uma leitura do que se passa. Essas três maneiras de contar a história dão a cara ao filme e isso já estava indicado no roteiro. Ou seja, qualquer decisão do roteirista pode transformar o filme radicalmente não só em seu conteúdo, mas em seu formato. Há uma pequena guerra nos EUA no momento, entre os roteiristas e os estúdios. Eles querem ser reconhecidos como autores dos filmes no mesmo patamar que os diretores com cachês e prestígio igual. Acho mais do que justa esta reivindicação. Só porque o que escrevem vai para o lixo no final da filmagem não quer dizer que seu trabalho não tenha a mesma, ou às vezes maior, importância do que o trabalho do diretor.

Muitas vezes quando penso num roteiro, fico quebrando a cabeça para tentar achar uma trama que nunca pare de se desenrolar, (essa é a primeira lição que se aprende em cursos de roteiro, se uma cena não transforma a história ela está sobrando e deve ser cortada). Com esse filme aprendi que às vezes não é preciso fazer a trama andar, o simples deslocamento do ponto de vista, a troca de narrador, gera um enorme movimento mesmo que a ação pare. Isso era apenas uma idéia teórica que agora confirmei na prática. E parece funcionar. Aliás, não é nenhuma novidade a troca de narrador num filme. Muitos filmes são apoiados nesta idéia, uma mesma história vista por diferentes ópticas. Minha bíblia do roteiro, que é “Goodfellas” (os “Bons Companheiros”), escrito pelo mesmo autor do livro, Nicholas Pileggi, faz isso muito bem. Quem conta a história da Máfia no filme é o Henry Hill, (personagem do Ray Liotta) mas de uma hora para outra, sem aviso, sua mulher, Karen (Lorraine Bracco) passa a narrar. O Bráulio Mantovani e eu até tentamos fazer o mesmo em “Cidade de Deus”, mas como aquela história já era muito confusa resolvemos deixar apenas um narrador, o Buscapé. Só não copiamos “Goodfellas” por que não deu certo.

Os bons filmes estão aí para serem copiados, ou “homenageados”. Não são poucas as “homenagens” que presto.

(E se alguém encontrar um fichário de capa de plástico azul com um roteiro todo rabiscado dentro, já sabe. É meu. Façam a gentileza de devolver ou me informar através de um comentário neste blog, que tenho lido regularmente).

quinta-feira, 18 de outubro de 2007

Post 9: Sobre simplicidade, Japoneses e Sacadas.

Iskye Isseya - Primeiro Homem Cego (foto de Alexandre Hermel)


Tirei um peso das costas. Explico:
No roteiro, há uma relação conflituosa entre o Primeiro Homem Cego e A Mulher do Primeiro Homem Cego. Eles já são apresentados brigando. A Mulher é tão egoísta que não consegue ficar ao lado do marido nem quando ele acaba de perder a visão. No livro não é assim. Estranhei esse tom hostil do roteiro a princípio, mas depois vi que havia ali uma oportunidade para a criação de um bom arco dramático para o casal. Roteiristas sabem que o conflito é a melhor gasolina para qualquer história.

Para o papel do Primeiro Homem Cego e sua mulher, convidei dois atores japoneses, Yoshino Kimura e Yuske Isseya, que coincidentemente começaram a namorar assim que foram escalados. Na história eles cegam, vão para uma quarentena, mas mesmo assim quase não se falam. Ao pensar nessa situação sem saída deste casal me veio uma imagem: Os dois sentados num banco diante de um enorme muro, no meio do lixo. A imagem então virou uma cena, que já filmei. Eles começam lado a lado, estão banhados pela cálida luz de uma fogueira que crepita aconchegantemente. Tudo ao redor está desfocado, a imagem é romântica e ele tenta reconforta-la. Havia um texto no roteiro, mas o Yuske me pediu para substituí-lo por uma história real de uma experiência que ele viveu com a Yoshino, que aconteceu também na frente de uma fogueira. Ela não sabia que ele iria mudar completamente o texto.

Rodamos as câmeras sem ensaiar ou avisá-la da mudança, e ele começou: “Você se lembra do dia em que nos conhecemos? Foi no ano novo, em um templo, diante de um fogo como esse, estava frio, nós nos encostamos e ficamos aquecidos, não queríamos mais nos descolar”. E continuou acrescentando alguns detalhes daquele dia num tom emocional. Neste momento ela já estava lacrimejando. A cena me pareceu linda, mesmo eu não entendendo patavina, pois foi falada em japonês.

“-Você se lembra daquele dia?”, concluiu. Então, como um samurai desembainhando a espada, ela responde: - “Fique quieto. Eu não consigo fingir”. Nesta hora vou cortar da imagem romântica em close e revelar que estão sentados no banco diante do tal muro e revelamos que o fogo vem de uma pilha de lixo sendo queimado. O foco da imagem “real” arrasa a imaginação desfocada. Não há mais comunicação entre eles. Nem brigar ela briga e a relação dos dois piora ainda mais. (Aliás, tudo parece só piorar neste filme.)

Como é sempre mais fácil derrubar do que construir, foi bico plantar esse conflito entre o casal, mas depois era preciso criar uma solução para eles. Durante semanas conversei com os atores e com o roteirista sobre possíveis cenas para a reconciliação dos personagens. Um pedido de desculpas, sexo, discutiriam a relação? Todos os caminhos me pareciam demasiadamente melodramáticos ou óbvios. Eu gostaria de encontrar algo bem simples. A simplicidade é sempre mais tocante, mas é impressionante como só o repertório de clichês vem à tona nestes momentos. O tempo passava e nada. Fomos para o Uruguai e a necessidade de acharmos um final para a trama do casal começou a aumentar. Já estamos rodando as últimas cenas da história (ainda falta rodar todo o início) e até hoje não tínhamos uma saída para este conflito plantado. Então, essa tarde, sentado no set com os atores, o próprio Yuske me entregou a solução de bandeja: Como há uma lareira na casa do Médico para onde todos os personagens vão no final, a idéia seria colocar o casal ali , ao lado do fogo, fazer um enquadramento muito parecido com o da cena do muro e então a Mulher do Primeiro Homem Cego, que estaria em silêncio ao lado do marido, talvez pensando sobre os vários acontecimentos pelos quais passou durante as últimas semanas, de repente, vira-se para ele e responde a pergunta de semanas atrás:
“Eu me lembro daquele dia sim”. Ele sorri levemente. E assim a conexão entre os dois se restabelece. Ponto.

Claro que sem eu descrever o percurso dos personagens daquele dia do muro até esse momento essa solução parece meio besta, mas a idéia é mostrar que toda a experiência e o sofrimento pelo qual ela passou de certa forma destamparam alguma coisa nela (a visão ?) e que nesse restabelecimento do contato com o marido está sintetizada sua transformação. Bonito, não? (Bem, talvez assim, lido, não pareça tão bom, mas com aqueles atores e falado em japonês acho que vai ficar bacana.)

De qualquer maneira gosto destes momentos, quando alguma peça que estava faltando se encaixa no quebra-cabeça, quando um corte modifica uma cena, um movimento de câmera parece ter alma, ou ainda uma música colocada veste uma seqüência. São momentos vivos. Ser surpreendido por eles é o maior prazer desta profissão. Gostaria de acreditar que são também esses momentos que conectam os espectadores aos filmes, mas imagino que 95% destas sacadas se percam em algum lugar entre a tela e as poltronas do cinema e, como o replicante no final de Blade Runner, me pergunto:
“Onde vão parar todos esses momentos?”

Mesmo assim trabalho forte pelos 5% que podem chegar até o destino, que é a mente do camarada sentado na poltrona olhando para a tela branca banhada pela luz do projetor.

Há um pouco de Sísifo neste meu ofício.