terça-feira, 12 de fevereiro de 2008

14: Sobre música, codornas e unicórdio

Intróito: Caro leitor (se ainda houver algum depois deste tempo todo),

passaram-se uns dois meses desde meu último texto e confesso que parei de escrever por preguiça. Parei também porque soube que andaram traduzindo este blog para o inglês e que ele estava se espalhando mais do que o esperado. Isso me obrigaria a medir mais as palavras e eu correria o risco de ficar escrevendo um blog chapa-branca. Então parei. Só que agora resolvi colocar aqui mais uns dois ou três textos para ao menos fechar este processo que comecei. Chega de coisas não terminadas na vida. O texto abaixo foi escrito e abandonado em dezembro. Acabei de terminá-lo e aí está.

Impressionante: o vôo das 19h15 para Belo Horizonte saiu de São Paulo às 19h15. Desde que criaram a ANAC eu não pegava um vôo no horário, e com esse Nelson Jobim no Ministério da Defesa achei que minhas chances de voltar a sair e chegar no horário haviam ido para o espaço (desculpe a digressão, mas como um camarada deste pode imaginar que tem alguma chance de vir a ser presidente do Brasil? Se ele for fiel a sua própria história e inteligência, já já deve propor uma linha direta entre São Paulo e Belo Horizonte de submarino. É esperar para ver. Ele não tem a mínima noção de quem seja ou do que representa. É a mancha negra no currículo do próprio analista...) De qualquer forma o vôo para BH estava no horário. “Bom presságio”, pensei.

No dia seguinte iria finalmente ouvir as músicas do filme até então mantidas em segredo pelo Marco Antonio Guimarães, o maestro. O Marco Antonio é o criador do genial grupo mineiro Uakti, banda responsável pela trilha sonora do filme. Formam o Uakti: Paulinho, Arthur, Décio e o próprio Marco Antonio, que é violoncelista, mas nesse trabalho toca chori, gig, tampanário, únicordio, marimba de vidro com arco, entre outros instrumentos.

Na trilha, ele só não pega no violoncelo. Sorte a minha. Não que eu não goste de violoncelo: adoro, mas é que a idéia de fazer a trilha com o Uakti foi justamente trabalhar com timbres desconhecidos, com o intuito de colocar o espectador num universo sonoro tão novo quanto o mundo da cegueira. Orquestra, quartetos de cordas, pianos ou violões, por serem muito usados no cinema, nos falam de emoções de um mundo mais conhecido, e neste filme a música deveria levar o espectador para outro lugar.

O Marco Antonio contou que aprendeu marcenaria ainda criança. Há trinta anos, quando criou o grupo, dividia seu tempo entre ensaios, turnês e sua oficina, onde inventava os próprios instrumentos, trabalho inspirado pelo suíço Anton Walter Smetak – também violoncelista, também inventor de instrumentos. Smetak passou grande parte da sua vida na Bahia, onde desenvolveu um trabalho extremamente experimental.

As sonoridades que marcam as músicas do Uakti provêm de instrumentos artesanais, que contam com boa dose de criatividade: o Pan e a Marimba de Vidro. O primeiro é aquela série de canos de PVC afinados, percutidos com uma borracha ou com sandálias Havaianas, que foi popularizado no mundo pelos Blue Men; já o outro pode ser tocado com uma baqueta ou então com um arco de violino. E ainda há dezenas de outras invenções (para quem não os conhece bem, seus instrumentos e sons podem ser vistos e ouvidos no site http://www.uakti.com.br/).

Pela manhã fui encontrá-los no estúdio Acústico, onde estavam gravando e montando a trilha. Fui sem saber o que iria ouvir. No final de outubro, enviei um DVD com o segundo corte do filme, trocamos alguns e-mails, mas não recebi de volta nenhum acorde sequer. Achei que nesse encontro iríamos falar sobre idéias para a trilha e ouvir alguns rascunhos de música. Foi só no caminho para o estúdio que fiquei sabendo que eles já haviam gravado 60 faixas e que o trabalho estava praticamente concluído. É isso mesmo, 60 faixas, sendo que no filme há espaço para umas 45, no máximo.

Já vi criadores eficientes e independentes, mas o Marco Antonio bateu todos os recordes. É verdade que, na versão de montagem do filme que ele recebeu, usamos 100% de músicas do próprio Uakti, o que lhe dava uma boa referência do clima e dos timbres que gostávamos para cada cena. Por confiar nas hábeis mãos do músico, a notícia de que a trilha do filme ficou pronta antes mesmo da montagem não me deixou em pânico. Tive apenas uma espécie de ansiedade galopante no trajeto até o estúdio, o que só dificultou um pouco a digestão das broas de milho do meu café da manhã. Nada grave...

O Uakti usa instrumentos feitos com cabo de machado, tampas de panelas, sarrafos, garrafões plásticos de água, mas ao mesmo tempo o Marco é bastante hi-tech. Incorpora os recursos digitais em seu processo criativo: ele escreve as partituras a lápis num caderno com pautas, grava cada instrumento separadamente e completa seu trabalho de criação juntando as partes no Pro-Tools, um programa de composição. Além de uma enorme liberdade criativa, esse processo deixa em aberto possibilidades de rearranjo das músicas, coisa fundamental quando ainda não se tem o corte final.

Como havíamos combinado a criação de uma trilha mais minimalista, sem temas grandiloqüentes, ele mostrou seis músicas para serem colocadas em cenas específicas, com pontos de entrada e saída definidos; depois, me apresentou mais um pacote de 54 temas compostos para tubões, trilobitas, tri-lá, torre, balão, garrafão, tambor d’água, tambor metálico, lata-de-leite-em-pó-em-dó, tubo-grande, peixe, tampanário, garrafa soprada, únicordio, etc.

Após uma rápida introdução para cada composição, ouvíamos tentando imaginar para qual cena do filme funcionaria. Evidentemente o Marco tinha suas sugestões, mas percebi que ele estava mais interessado em criar um universo sonoro particular para o filme, deixando a nosso critério (meu e do Daniel) a decisão final sobre onde iria cada uma daquelas composições. Independentemente de onde colocássemos cada música, a sonoridade que criou para o filme estaria garantida.

Ter tal liberdade de uso da música me surpreendeu, mas não desagradou. Faixas que o Marco imaginou para algumas cenas específicas inevitavelmente iriam parar em outras. Gosto de deixar uma cena ir para um lado e vir com a música falando quase o oposto. Música leve para cena dramática. Um velho truque infalível. Aquela audição foi como receber de presente um jogo de armar. Música para armar. Um processo muito diferente que eu jamais havia feito. Voltei para São Paulo com o pacote de canções debaixo do braço, ansioso para começar a colocá-las no filme (e com 1h30 de atraso. Jobim e sua turma da INFRAERO e ANAC tardam, mas “não falham”).

A montagem já estava em sua sexta versão. Muitas cenas precisavam de uma música que as fizesse crescer em tensão, ou que fossem mudando de clima pouco a pouco. Mas como a maioria das músicas eram mais minimalistas, conforme o combinado, percebemos que às vezes o esforço dos atores ou da montagem para colocar ou tirar energia de uma cena estavam sendo atenuados pela música.

Para conseguir estas mudanças de clima, começamos então a combinar mais de uma música numa mesma cena. Às vezes somávamos três ou quatro pistas. Neste processo, o Daniel se sentiu bastante incomodado e insistia que deveríamos mandar tudo de volta para o Marco e pedir-lhe que fizesse sua versão de montagem primeiro, para afinarmos a partir daí. Só que não havia tempo. Tínhamos que terminar uma versão do filme para apresentá-lo aos distribuidores em Nova York, e então fomos seguindo assim mesmo. Acabamos a montagem da música na correria. Mandei uma cópia para BH no início de janeiro e em seguida voei para NY. Ao retornar, recebi um e-mail do Marco Antonio, chateado com o que havíamos feito com seu trabalho. Tomamos um pito por termos feito algo para o qual não estávamos equipados tecnologicamente, e muito menos com os conhecimentos musicais necessários.

A solução foi combinarmos uma nova ida a BH onde trabalharíamos juntos ininterruptamente em cada entrada até sair com a música do filme pronta. Isso aconteceu em meados de janeiro.

O Alexandre, como um perfeito anfitrião mineiro, mandou preparar ali na cozinha do seu estúdio deliciosos tutus, carne de porco, angu e até codornas, para não termos que sair da imersão. Em três dias, sem muita pausa, o trabalho foi completado e saímos todos felizes. Partindo da nossa montagem meio Frankenstein, o Marco foi simplificando o trabalho, deixando as músicas por mais tempo, evitando algumas misturas, tirando efeitos que pontuavam demais a ação. Trilha didática é ruim mesmo, aprendemos na prática. Ele fez uma espécie de limpeza geral e sentimos que o filme ganhou com isso. Tudo ficou mais simples e ao mesmo tempo mais complexo – se é que essa contradição possa ser conciliada.

Agora, no início de fevereiro, já estamos na oitava versão da montagem. Como todos os ruídos já estão sendo enviados de Curitiba pelo Alessandro Larocca, nosso sound-designer, provavelmente teremos que remontar algumas músicas, mas aí será um trabalho mais simples, apenas de adaptação do que já está pronto. Estamos na reta final (espero).

Em breve notícias do sofrido processo de montagem e da artilharia verbal dos amigos.